01/07/2009 - 0:00
Uma das representações europeias de Saartjie. O anjo desenhado sobre suas nádegas visava a atenuar o apelo sexual que os ocidentais da época enxergavam em sua figura.
Em agosto de 2002, na Cidade do Cabo (África do Sul), aconteceu o funeral solene de Saartjie Baartman, a quem foram reservadas todas as honras de um chefe de Estado. Saartjie morreu há 194 anos, mas só em 2002 o que restava dela foi levado para sua terra natal: um esqueleto e dois frascos de vidro – um contendo seu cérebro e o outro, seus órgãos sexuais, conservados em formol. Durante quase dois séculos esses restos ficaram expostos no Museu do Homem, em Paris, depois que, em dezembro de 1815, o médico Georges Cuvier fez a autópsia da mulher que, em vida, ficou conhecida como a “Vênus Hotentote”.
Saartjie pertencia ao povo khoisan, a mais antiga etnia humana estabelecida na parte meridional da África, que os primeiros invasores europeus chamaram de hotentotes ou bosquímanos. Foi assumida como serva pela família Baartman, agricultores holandeses que moravam nas proximidades da Cidade do Cabo. Eles lhe deram o nome de Saartjie (“Pequena Sara”) Baartman. O irmão do seu patrão lhe propôs levá-la em turnê pela Europa, prometendo-lhe a metade do valor dos bilhetes que seriam pagos para vê-la.
Saartjie tinha apenas 1,35 metro de altura e era considerada particularmente bonita entre as mulheres do seu povo. Tinha características físicas pelas quais, desde a mais remota antiguidade, as mulheres bosquímanas se notabilizaram: nádegas enormes e elevadas (como traço característico da sua etnia, os bosquímanos acumulam gordura não sobre a barriga, mas sobre as nádegas) e os pequenos lábios vaginais muito desenvolvidos (aumentados de 8 a 10 cm a partir da virilha, para baixo), e chamados de “avental hotentote”.
No “espetáculo” organizado pelo irmão de Baartman, Saartjie aparecia presa a uma corrente (nua, porém com a vagina coberta) e caminhava de quatro, de maneira a ressaltar o seu traseiro e sublinhar a natureza “animalesca” que, naqueles tempos, costumava-se atribuir à sensualidade. Ela, no entanto, sempre afirmou fazer aquilo por sua livre e espontânea vontade, para ganhar dinheiro. Em Londres, Saartjie se casou com um homem originário do Caribe e teve dois filhos: ela tinha, portanto, uma vida própria, inclusive quando era exibida como um fenômeno de circo.
ALÉM DE SERVIR COMO CHAMARIZ DE PÚBLICO PARA OS CIRCOS NOS QUAIS FOI EXIBIDA, SAARTJIE ATRAIU A ATENÇÃO DE ARTISTAS E CIENTISTAS DE SUA ÉPOCA
Depois de uma estadia em Londres que durou três anos e meio, Saartjie foi para Paris, onde um amestrador de animais a exibiu durante 15 meses, fazendo propaganda das suas nádegas e dos seus pequenos lábios (“parecidos às barbelas do peru”, como eram descritos nos folhetos de propaganda). Posou nua para “retratos cientí- ficos” no Jardin du Roi, foi examinada por todos os cientistas mais importantes da época (entre os quais o célebre médico George Cuvier), mas adoeceu e, em vez de retornar rica para a África do Sul, como havia sonhado, morreu na Europa de uma doença infecciosa, em dezembro de 1815. Cuvier fez a autópsia e removeu toda a região púbica de Saartjie. Esses despojos, conservados em formol, foram depois expostos no Museu do Homem, em Paris. Só em 2002 o parlamento francês aprovou uma lei para que os restos fossem levados para a África do Sul.
As imagens de Saartjie salientavam as nádegas. Suas características a levaram a ser examinada por cientistas famosos.
Saartjie foi o caso mais famoso de uma mulher hotentote levada em turnê, mas não foi o único. Há séculos, indígenas das terras “recém-descobertas” eram levados em turnê pela Europa como curiosidades. Mas, no século 19, explodiu a moda dos circos com grandes animais ferozes: por que, então, não juntar a eles alguns “humanos ferozes”?
Nasceram assim os zoológicos humanos. O pioneiro foi o de Phineas Barnum (1810-1891), o dono do Circo Barnum. Os hotentotes foram os mais expostos nesses zoos: em Berlim, por exemplo, foi realizada a exposição “Trogloditas africanos”; em 1886, fez um sucesso estrondoso a exposição “Pigmeus da África”, no Folies Bergère, em Paris. Já na primeira metade do século 16, centenas de índios brasileiros tinham sido levados para a Europa, sobretudo a França. Ficou famosa a grande festa “Guerra dos Tupinambás”, encenada na cidade de Rouen em 1550, em homenagem ao rei Henrique II, na qual cerca de 50 índios brasileiros e mais 250 figurantes franceses fantasiados de índios representaram uma batalha campal diante da corte estupefata do soberano.
É fácil, assim, compreender como foi que aqueles poucos restos mortais de Saartjie, remetidos por via aérea – um esqueleto e dois fracos com formol – estejam embebidos de história, de ideologia, do insuportável ônus do racismo e da ferocidade “científica” do colonialismo. E por que aqueles ossos, aqueles pedaços de cérebro e alguns frangalhos de vagina tenham recebido as honras de um funeral de chefe de Estado, com salvas de canhão e discursos sobre a herança e a identidade africanas.
Seu sonho era voltar para casa rica. Em vez disso, morreu na Europa, e depois da autópsia suas partes anatômicas acabaram num museu.
A comunidade humana mais antiga
Khoisan (também conhecidos por bosquímanos ou hotentotes) é a designação de uma família de grupos étnicos existentes na região sudoeste da África, que partilham algumas características físicas e linguísticas. Aparentemente, esses povos têm uma longa história, estimada em milhares, talvez dezenas de milhares de anos, mas hoje existem apenas pequenas populações, principalmente no deserto do Kalahari, na Namíbia.
Os khoisan atuais podem ser descendentes de povos caçadorescoletores que habitavam toda a África Austral e que desapareceram com a chegada dos bantos a essa região, há cerca de 2 mil anos. O estudo genético de um grande número de populações humanas atuais, feito desde 2003 por Sarah A. Tishkoff, da Universidade da Pensilvânia, sugere que o “berço da humanidade” ficaria na região dos khoisan, mais exatamente no litoral da fronteira. Aí foi encontrada a maior diversidade genética, baseada num gene traçador que, comparado com o de outros povos, indica a possível migração das populações ancestrais para o norte e para fora da África, há cerca de 250 gerações.
Até a instalação dos holandeses e dos franceses protestantes na África do Sul, há cerca de 200 anos, esses povos ainda habitavam grandes extensões da Namíbia e do atual território de Botsuana, mas foram praticamente exterminados, uma vez que não aceitavam trabalhar nas condições que os novos colonos exigiam. Esses colonos chamaram-lhes hotentotes – que significa “gago” na língua holandesa, provavelmente devido à sua maneira peculiar de falar – ou bushmen, ou seja “homens da fl oresta”, termo que foi adaptado para a língua portuguesa como bosquímanos. Fisicamente, os khoisan são em média mais baixos e esguios do que os demais povos africanos. Além disso, têm uma coloração de pele amarelada e olhos amendoados, como os chineses e outros povos do Extremo Oriente. Algumas dessas características encontram-se agora espalhadas por outros grupos étnicos sulafricanos, sendo patentes, por exemplo, em Nelson Mandela. Outra característica física dos khoisan é a esteatopigia das mulheres (grande desenvolvimento posterior das nádegas). Os khoisan possuem o mais elevado grau de diversidade do DNA mitocondrial de todas as populações humanas, o que indica que eles são uma das comunidades humanas com história mais antiga. O seu cromossomo Y também sugere que esse povo se encontra, do ponto de vista evolucionário, muito perto da raiz da espécie humana.