21/09/2022 - 6:26
Obit anus, abit onus: A velha morre, a carga se vai.
A frase consta do livro de contas de um certo senhor alemão do século 19. Mais de 20 anos antes, ele machucara seriamente, numa briga, o braço de uma costureira, sendo condenado a pagar-lhe uma pensão vitalícia. Agora, por fim, com a morte da ex-vizinha, a despesa estava quitada.
Tanto a história como seu final não soam nada nobres, muito menos para um filósofo. No entanto, assim era Arthur Schopenhauer (1788-1860): um homem de extremos e contradições.
Teoria e prática de Schopenhauer
Nos atos, um Don Juan; nas ideias, um misógino, seu julgamento sobre o matrimônio era sumário: “Casar-se significa agarrar um saco, de olhos vendados, e rezar para que se ache uma enguia em meio a um monte de cobras”. Além disso, por melhor que um casamento fosse, ele sempre resultava em “reduzir à metade os próprios direitos e duplicar as obrigações”.
Em contrapartida, Schopenhauer foi um dos primeiros europeus a se baterem pelos direitos dos animais. E admirava os vegetarianos da Índia, embora ele mesmo comesse carne e estivesse longe de ser um asceta.
Nascido em 22 de fevereiro de 1788 em Danzig (hoje Gdansk, na Polônia), Arthur Schopenhauer cresceu em Hamburgo e conheceu a Europa viajando com seus pais.
Assim descreve o biógrafo Rüdiger Safranski a trajetória do pensador: “O pai, um rico empresário, queria que ele fosse comerciante. Schopenhauer tornou-se filósofo, beneficiando-se da morte do pai e com a ajuda da mãe, que ele mais tarde trataria como inimiga”. Fato é que a fortuna herdada permitiu ao solteirão viver para a filosofia, e não dela, como os professores universitários que ele tanto odiava.
Influências orientais
Tal independência em relação a instituições ou mecenas certamente favoreceu a agudeza de seu olhar sobre o mundo e a existência, sintetizada em inúmeros aforismos como: “Para não ser infeliz demais, o meio mais seguro é não exigir muita felicidade”.
O escritor Thomas Mann definiu Schopenhauer como “o mais racional filósofo do irracional”, outros o tachariam de pessimista, niilista, rabugento. Em sua obra-mestra, O mundo como vontade e representação (Die Welt als Wille und Vorstellung) – concluída em 1818, e que se encerra com a palavra “nada”) –, ele anuncia haver solvido o enigma da existência.
O resultado é bem pouco alvissareiro: toda biografia é “uma história de dor”, o livre-arbítrio é uma ilusão, e o homem, um ser à mercê dos próprios desejos e emoções. Porém, há como encontrar consolo e paz interior em meio à realidade dolorosa: através da ascese ou tentando minorar a dor dos outros. Compaixão, para Schopenhauer, é “o único verdadeiro motor moral”.
Tal atitude deveria bastar para libertar o filósofo do epíteto de pessimista. Sua fixação nos temas sofrimento e redenção também se origina na leitura de textos budistas e hinduístas: ele foi um dos primeiros pensadores europeus a se deixar inspirar pela sabedoria do Extremo Oriente.
O amor e os poodles
Uma influência que se estenderá a filósofos e artistas como Friedrich Nietzsche, Leo Tolstoi, Hermann Hesse ou Richard Wagner. Este último, após ler O mundo como vontade e representação, aprofundou as noções de negação do mundo e de dissolução no amor, que permeiam todas as suas subsequentes óperas, de Tristão e Isolda a Parsifal. Não por acaso, o compositor dedicou a Schopenhauer seu libreto para a tetralogia O anel do Nibelungo.
Na fruição das artes plásticas e da música, Schopenhauer via o caminho para a paz da alma. Através do “prazer estético do belo”, toda vontade, desejo, preocupações se desfazem. A arte é uma das raras fontes de luz e consolo em meio à noite da existência mundana.
A arte e a compaixão: “A bondade do coração consiste numa compaixão profundamente sentida, universal com tudo que tem vida”. Um princípio que o filósofo aplicaria, em especial, aos cães. Seus últimos anos – em Frankfurt, onde morreu a 21 de setembro de 1860 – o encontram passeando às margens do rio Meno, com algum de seus numerosos poodles, com quem conversava em inglês.
Estes se chamavam simplesmente “Butz”, um nome genérico, ou “Atman” – “sopro”, em sânscrito. Os poodles de Schopenhauer eram, portanto, a “alma do mundo” sobre quatro patas. E quando se comportavam extremamente mal, o filósofo só tinha um insulto: “Homem!!!”.