17/11/2022 - 5:39
No litoral sul do Mar Mediterrâneo, na entrada do Canal de Suez, havia uma estátua gigantesca até 1956. Era do francês Ferdinand de Lesseps. Com a cabeça orgulhosamente levantada e mão direita aberta e estendida, o homem de bronze saudava o vaivém de navios. Milhares de passageiros olhavam deslumbrados para o colosso e pensavam: “Este é o pai do Canal de Suez.”
“Eles não sabem que este ídolo não passa de um monumento a uma grande falsificação da história”, escreveu em 1940 Nikolaus Negrelli. “Eles não têm ideia de que a planta de construção, segura pela mão esquerda no alto, nasceu de outro cérebro.”
Negrelli tinha motivos para se irritar. Afinal, os planos de construção do Canal de Suez não foram desenhados por Lesseps, mas pelo avô do denunciante, o italiano Alois Negrelli, cavaleiro de Moldelbe, a quem os egípcios não dedicaram nenhum monumento.
Ligação já existia no tempo dos faraós
Alois Negrelli e Lesseps trabalharam juntos em meados do século 19 na Comissão Internacional do Suez. Ambos sabiam que na época dos faraós já houvera uma ligação artificial entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho, mas que acabara soterrada pela areia do deserto. Negrelli estava convencido de que um novo canal poderia ser escavado.
Segundo Negrelli, “a ligação dos dois mares através de um canal marítimo era uma necessidade inquestionável não só para o desdobramento do comércio mundial, com o encurtamento do caminho entre a Europa e os países ricos do Oriente no Oceano Índico, mas também para a revitalização do tráfego marítimo na costa do Egito e para o florescimento de melhores condições de vida neste país abençoado.”
Negrelli morreu antes de poder concretizar seus planos. Lesseps usou-os. Ele comprou da viúva todas as plantas e apresentou-as como de sua autoria. No entanto, o engenheiro Lesseps pouco entendia do assunto. Suas virtudes estavam na política, a qual praticava como vice-cônsul da França no Egito. O astucioso diplomata providenciara a autorização para a obra do canal já em 1854, iludindo seu amigo vice-rei do Egito.
Lesseps: “Os nomes dos construtores das pirâmides, monumentos inúteis do orgulho humano, estão afundando no esquecimento. O nome do príncipe que abrir o grande Canal de Suez será enaltecido em todo o mundo durante séculos.”
O diplomata fundou uma sociedade anônima. Mas os investidores mostraram-se hesitantes e apenas 75% das 400 mil ações postas à venda foram subscritas. Mesmo assim Lesseps pôde em abril de 1859 dar início ao empreendimento. A construção foi criticada sobretudo pelos britânicos. A Inglaterra acabara de inaugurar uma linha ferroviária de Alexandria a Suez e temia por sua receita. Quando Lesseps gastou todo o dinheiro, o jornal britânico Standard atacou: “O que os acionistas irão dizer? Estes especuladores da França, Egito e Turquia? Eles vão se arruinar! Quando os 200 milhões estiverem gastos, a empresa irá abaixo por falta de recursos.”
Festa para os nobres europeus
O jornal enganou-se. Milhares de egípcios continuaram escavando o canal sob o calor escaldante do deserto. Muitos deles morreram por esgotamento. Lesseps manteve-se determinado. Em 1869, o canal estava pronto. A construção demorou o dobro do tempo previsto e custou três vezes mais que o planejado. Na véspera da inauguração, em 16 de novembro de 1869, realizou-se em Port Said uma grande festa. Nobres de toda a Europa participaram. Nos dias seguintes, eles fizeram oficialmente a viagem inaugural pelo canal. O príncipe herdeiro da Prússia, Frederico Guilherme, estava entre os presentes.
“Até a chegada em Ismailia, a viagem não ofereceu mais do que a paisagem de um canal retilíneo, entre margens de areia. Por três vezes, o navio austríaco Elisabeth, que estava à nossa frente, encalhou em bancos de areia e impediu a passagem do nosso e dos demais que vinham em seguida. Fora isto, a viagem de sete horas transcorreu sem incidentes. Mas claro que os navios avançaram sempre cuidadosos”, comentou o futuro imperador alemão.
Na inauguração, ninguém mais falava de Negrelli. O idealizador do canal ficara esquecido. Somente mais tarde, a filha do engenheiro encontrou papéis importantes que provavam ter sido seu pai, e não Lesseps, quem desenhou os planos para o canal. Ela levou a questão à Justiça. Sentença: Alois Negrelli, cavaleiro de Moldelbe, é o criador do canal. A decisão, porém, não trouxe benefícios para a família do engenheiro italiano. Somente a humanidade e os países proprietários do canal lucraram com a hidrovia.