04/11/2022 - 5:53
A inquietação pairava sobre a República Democrática Alemã (RDA) há muito tempo. Durante meses, mais e mais pessoas se arriscaram e foram para as ruas. Todo mês, em Leipzig, dezenas de milhares protestavam pela liberdade de expressão e pelo direito de ir e vir. Cada vez mais cidadãos viravam as costas – às vezes, de maneira perigosa – ao país falido econômica e politicamente. No jargão do regime comunista da RDA, eles eram “refugiados da República”.
Erich Honecker, que desde 1973 era o homem mais poderoso do país, foi derrubado em 18 de outubro de 1989. Seu sucessor, Egon Krenz, também não gozava da confiança da população. Nesse contexto, ocorreu em 4 de novembro de 1989 a maior manifestação autorizada pelo regime da história da Alemanha Oriental.
O ato foi organizado por atores e pessoas ligadas ao teatro de Berlim Oriental. Eles invocaram os artigos 27 e 28 da Constituição, ou seja, o direito de liberdade de expressão, de liberdade de imprensa e de aglomerações populares. Artigos que, nos 40 anos da RDA, existiam apenas em teoria.
Naquele dia, a Constituição, que fora espezinhada por tanto tempo, foi enchida de vida por uma enorme multidão reunida na icônica praça Alexanderplatz, em Berlim. As estimativas variam entre 200 mil e 1 milhão de participantes. Foi uma experiência única na história da RDA: os manifestantes se aglomeraram diante de um pequeno caminhão, em cuja carroceria foi montada uma plataforma improvisada de madeira. Esse foi o palco de mais de 20 oradores, entre eles, atores, cantores, escritores, pastores, mas também representantes do regime.
Um deles ficaria conhecido mundialmente cinco dias depois, em 9 de novembro de 1989: Günter Schabowski, diretor do Partido Socialista Unitário da Alemanha (SED) na capital alemã. Foi ele quem anunciou numa coletiva de imprensa uma nova lei de viagens, que derrubou inesperadamente o Muro de Berlim.
No protesto de 4 de novembro, Schabowski foi vaiado sem piedade – até mesmo quando abriu seu discurso com a reivindicação de “aceitar a cultura de diálogo”. Mas naquele momento, os funcionários do precário regime da RDA já não tinham qualquer crédito com a população. A autocrítica de Schabowski se perdeu na vaia ensurdecedora.
“Numa hora destas, o que move um comunista à vista e na mira de centenas de milhares?”, perguntou à plateia majoritariamente hostil. “Somente quem ouve e entende o aviso é capaz de um novo começo”.
Quem soube fazer uso das palavras de Schabowski foi Friedrich Schorlemmer, crítico do regime e teólogo de Wittenberg, cidade do reformador protestante Martinho Lutero. Schorlemmer recitou uma versão levemente modificada do hino da RDA: “No outono de 1989, reerguemos das ruínas e o nos reorientamos ao futuro”.
Sob a impressão dos muitos refugiados da RDA, Schorlemmer pediu ao povo que permanecesse para renovar o país: “Agora, literalmente, precisamos de cada um de nós”.
O então jovem ator Jan-Josef Liefers, que atualmente interpreta um médico legista na mais renomada série criminal de televisão da Alemanha (Tatort), questionou publicamente o regime. “Enquanto o topo do SED apenas reagir a toda a nossa pressão, na minha opinião, não se pode falar num papel de liderança”, disse. Essas eram as frases que a multidão na Alexanderplatz queria ouvir. O aplauso para o discurso do ator foi correspondentemente grande.
Homem forte da Stasi cita “mundo ilusório”
Um dos mais autocríticos foi Markus Wolf, ex-vice-chefe da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental. Até 1986, ele comandou a agência de inteligência, a contrapartida do Serviço Federal de Informações (BND) da Alemanha Ocidental. Wolf citou a perda da realidade no aparato de poder da RDA, que, segundo ele, apesar das advertências cada vez mais corriqueiras dentro do partido, não se conseguiu impedir “que nossa liderança vivesse até 7 de outubro num mundo ilusório”.
Wolf estava se referindo à data de fundação da RDA. Por ocasião do 40º aniversário da República Democrática Alemã, em 1989, a antiga liderança se encenou e se celebrou pela última vez. Os protestos de opositores foram reprimidos brutalmente.
O ex-membro da Stasi afirmou que os camaradas, que ele apoiou por tanto tempo, falharam até mesmo “quando as pessoas começaram a votar com os pés”. Em outras palavras: cidadãos da RDA deixavam o país por meio de desvios, sobretudo, fugindo para as embaixadas da Alemanha Ocidental nos países socialistas vizinhos.
Ao contrário do que a Stasi temia, as três horas de manifestação no centro de Berlim Oriental decorreram sem confrontos. Alguns dias antes, o então chefe da Stasi Erich Mielke entregou às unidades designadas a trabalhar naquele 4 de novembro um conjunto de ordens, que incluíam a salvaguarda incondicional do Muro de Berlim. “Para evitar ataques na fronteira do Estado, devem ser preparadas medidas de bloqueio técnico e de agentes.”
As preocupações de Mielke se mostraram desnecessárias, porque as manifestações foram “incrivelmente belas”, como descreveu anos depois a ativista de direitos civis Marianne Birthler, que futuramente seria a chefe dos Arquivos da Stasi.
Em seu discurso na Alexanderplatz, Birthler falou sobre a violência do regime comunista e a esperança, “que finalmente estava crescendo há algumas semanas na RDA”. Na época, ela afirmou que na praça havia centenas de milhares de esperanças reunidas.
Também a Stasi teve que reconhecer isso, conforme indica um relatório detalhado sobre a manifestação que havia sido transmitida ao vivo na televisão. No documento, a Stasi observou, entre outras coisas, o que poderia ser lido numa bobina de cabos convertida num “rolo compressor popular”: “A roda da história não pode ser rebobinada”.
O previamente preocupado serviço de segurança da Alemanha Oriental atestou o comportamento “disciplinado” da esmagadora maioria dos manifestantes. As “forças inimigas”, com as quais o chefe da Stasi contava, não deram o ar da graça.
Em outro ponto, porém, Mielke teve razão: a manifestação de 4 de novembro de 1989, de acordo com os organizadores, poderia se tornar um “evento com implicações para a Europa”. Cinco dias depois, em 9 de novembro, caía o Muro de Berlim.