01/01/2009 - 0:00
Dois arqueólogos norte-americanos descobriram os traços mais antigos do primeiro alfabeto utilizado pelo homem no Egito, mais precisamente na estrada que desce do norte em direção à cidade real de Luxor, passando a oeste do rio Nilo, num despenhadeiro do deserto meridional. O caminho de terra batida, castigado por um sol implacável, infestado de escorpiões e cobras venenosas, é chamado em árabe de Wadi el-Hol, que pode ser traduzido por “despenhadeiro do terror”.
Nesse local corria, há 4 mil anos, um trajeto freqüentado por mercadores, pastores e soldados mercenários. Ao menos dois deles quiseram mostrar aos futuros viajantes que haviam passado por lá, e somaram à notícia uma evocação aos deuses para que os protegessem ao longo daquela estrada perigosa. No entanto, diferentemente de outros viajantes que haviam registrado preces parecidas sobre a delicada parede calcária daquele vale – utilizando os hieróglifos do complexo sistema de escrita egípcio –, nossos dois heróis entalharam seus grafites usando as letras do primeiro sistema alfabético de que se tem notícia.
A extraordinária descoberta confirma uma teoria já aceita por grande parte dos pesquisadores: que os alfabetos utilizados para escrever os principais idiomas do mundo – não apenas o inglês, o francês e o espanhol, mas também o grego, o russo, o tibetano, o hebraico, o hindi, o árabe – tiveram uma única origem. Todavia, inclui dois elementos revolucionários que modificam profundamente a história do alfabeto, uma das mais importantes conquistas dos povos: leva para trás em pelo menos 200 anos a data de sua invenção e revela os nomes – ou ao menos a nacionalidade – de seus autores.
Acima, inscrições descobertas no vale de Wadi el-Hol, no Egito. Nelas é possível reconhecer alguns símbolos característicos dos alfabetos semitas primitivos, como a linha ondulada (letra mem) ou a cabeça (rosh) que deram origem às nossas letras m e r. A idade dessa escrita foi obtida pelos dados registrados em inscrições localizadas perto dali, entalhados em hieróglifos egípcios. Nesta página, imagem de escriba, membro da casta profissional que no antigo Egito era responsável pela escrita de documentos e textos sagrados.
A descoberta dos grafites de Wadi el-Hol se deve a John Coleman Darnell, da Universidade de Yale: um arqueólogo que parece saído de um filme de Indiana Jones. Vestido como explorador do início do século 20, com seu inseparável chapéu rígido protegendo a cabeça do sol do deserto, capaz de caminhar sem parar em um ambiente habitado predominantemente por escorpiões e acompanhado da esposa Deborah, que divide com ele a paixão pela egiptologia, Darnell está redesenhando, há algum tempo, as antigas estradas por onde passavam as caravanas que uniam as principais cidades do Egito ao tempo dos faraós.
Assim, desde o início dos anos 1990, John e Deborah Darnell passam alguns meses do ano no deserto, em busca de traços de antigos caminhos: sinais de antiga pavimentação, restos de objetos de terracota e grafites deixados pelos transeuntes. No estreito vale de Wadi el-Hol as inscrições não faltam. Os grafites freqüentemente repetem o mesmo modelo: “Fulano de tal, mercador (ou soldado, militar, sacerdote, etc.) passou por aqui. Que os deuses (eventuais nomes) protejam sua viagem.” Há inúmeras inscrições, sobretudo entre 2000 e 1800 a.C., um período de guerras civis entre facções egípcias que muitas vezes se uniam a milícias mercenárias provenientes das terras hoje denominadas Israel, Líbano e Síria.
Na primavera de 1998, enquanto examinava os hieróglifos marcados nas paredes do despenhadeiro, o casal Darnell descobriu duas pequenas inscrições diferentes das outras, e que lembravam vagamente as escrituras alfabéticas descobertas no Egito e no Oriente Médio, apesar de mais recentes em ao menos 200 anos. Deborah e John fizeram uma cópia detalhada para mostrar aos colegas especialistas na decifração dos primeiros sinais alfabéticos.
Acima, outra inscrição descoberta por John e Deborah Darnell: só poucas palavras foram identificadas. À esquerda, mapa com a localização do Wadi el-Hol.
Entre os arqueólogos, como também entre os médicos, vigora uma rigorosa classificação de especializações. Existem egiptólogos que traduzem num piscar de olhos um hieróglifo milenar, mas que têm pouca familiaridade com escrituras deixadas nos mesmos lugares e na mesma época por povos diferentes. Isso, no entanto, é banal para uma outra categoria de estudiosos: os especialistas nos primeiros alfabetos dos povos semitas.
A especialização deles nasceu por volta de 1905, quando o arqueólogo inglês W. M. Flinders Petrie descobriu no templo de Serabit el-Khadem, na península do Sinai, algumas inscrições em uma língua desconhecida, datadas de cerca de 1500 a.C.. Os sinais usados por seus autores lembravam levemente os pictogramas dos egípcios e dos sumérios, mas tinham uma particularidade que os tornava únicos. Eram poucos, não mais que 30, e se repetiam com freqüência, ao passo que há centenas de pictogramas egípcios e sumérios.
Somente as classes mais altas do antigo Egito utilizavam os hieróglifos. Já o alfabeto permitia a qualquer pessoa ler e escrever
Em outras palavras: alguém tinha tido a idéia genial de substituir a complicada escrita baseada em figurinhas que representam objetos, pessoas ou conceitos abstratos por uma nova fórmula, baseada em cerca de 30 sinais capazes de representar os sons da língua falada e que, portanto, podiam ser combinados para formar todas as palavras daquela língua. Isso significa que um alfabeto substituiu os ideogramas – como os dos sumérios, dos egípcios ou dos maias e também os dos japoneses e dos chineses de hoje.
Isso trouxe uma enorme vantagem: enquanto o conhecimento dos hieróglifos exigia anos de estudo e seu uso era restrito a uma classe privilegiada da população, o alfabeto podia ser aprendido em poucas semanas e permitia a qualquer pessoa ler e escrever.
Nos anos subseqüentes, as descobertas de novas inscrições “alfabéticas” se multiplicaram e os especialistas tiveram à sua disposição muitos elementos para tentar escrever uma história de sua invenção. Como as inscrições mais antigas, referentes a cerca de 1700 a.C., tinham sido encontradas na Palestina, a hipótese mais plausível foi esta: o alfabeto tinha sido inventado por escravos ou mercadores originários do Oriente Médio que haviam freqüentado o Egito e, de volta à pátria, imitaram a maneira de escrever ideográfica, simplificando-a, para representar os sons de sua própria língua.
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Legenda do mapa
1.Ideogramas cuneiformes sumérios (3500-3000 a.C.)
2.Hieróglifos egípcios (1300 a.C.)
3.Escrituras persas primitivas (cerca de 3000 a.C.)
4.Escrituras lineares A e B de Creta (linear A, 1800 a.C.; linear B, 1450 a.C.)
5.Hieróglifos hititas (Turquia, cerca de 2000 a.C.)
6.Ideogramas do vale do rio Indo (cerca de 2200 a.C.)
7.Primeiros alfabetos semitas (2000 a.C.)
8.Ideogramas chineses (1300 a.C.)
9.Alfabeto grego (1200 a.C.)
10.Alfabeto etrusco (800 a.C.)
11.Entalhes de povos da América Central (600 a.C.)
12.Alfabeto ogham irlandês (300 d.C.)
13.Alfabeto copta etíope ( 300 d.C.)
14.Escrituras Kana japonesas (400 d.C.)
15.Alfabeto hangul coreano (inventado pelo rei Sejong em 1446)
16.Escrituras dos índios cherokees (inventada pelo índio Sequoyah em 1820)
17.Ideogramas da Ilha de Páscoa (cerca de 1850 d.C.)
Uma história que a descoberta dos Darnell modificou profundamente. Em junho de 1999, uma nova expedição, incluindo especialistas em alfabetos semitas e os de West Semitic Research Project, da Califórnia (EUA), vinda de Wadi el-Hol, confirmou a sua revolucionária importância.
“Traduzir as inscrições não será fácil, mas não há dúvida de que se trata dos escritos dos antepassados do Sinai que já conhecemos”, disse P. Kyle McCarter, um dos maiores especialistas em línguas semitas, tradutor dos famosos manuscritos do Mar Morto e hoje responsável pela tradução dos grafites de Wadi el-Hol.
A Pedra de Roseta permitiu decifrar os hieróglifos ao reproduzir as mesmas inscrições em outros dois sistemas de escrita.
O caminho do tradutor deverá seguir o trajeto inverso do procedimento adotado pelos inventores do alfabeto. Sua descoberta genial foi a de pegar um ideograma egípcio com determinado significado (por exemplo água, representada por uma série de pequenas ondas), traduzir seu significado na língua deles (na língua dos semitas ocidentais, “água” era traduzida pela palavra mem) e então utilizar aquele ideograma para representar a consoante inicial da palavra (m, nesse caso).
“Até agora acreditávamos que o alfabeto tivesse sido inventado por algum povo meridional que falava uma língua semita”, conclui McCarter. “Essa descoberta nos diz que ele foi criado pelo menos dois séculos antes do que pensávamos. E que provavelmente foi inventado no Egito por algum dos muitos povos de língua semita que viviam naquele país, possivelmente com a ajuda de um escriba.”
A descoberta faz a data da criação do alfabeto recuar 200 anos
Precursores de Gutenberg: O ENIGMA DE CRETA
Em 3 de julho de 1908, arqueólogos que escavavam no antigo palácio minóico de Festo (na ilha de Creta) descobriram um objeto que resistiu bravamente a todas as tentativas de interpretação. Trata-se de um disco chato, não pintado, de terracota, com diâmetro por volta de 15 cm, que leva impressos, dos dois lados, os símbolos de uma escritura, dispostos ao longo de uma espiral de cinco voltas convergindo em direção ao centro. O disco parece projetado com capricho, de forma que a escrita ocupa totalmente o espaço disponível (à direita, uma das faces).
O primeiro mistério do disco de Festo está ligado aos símbolos que o recobrem: são 45 sinais distintos agrupados de forma variada, que se repetem 241 vezes e não se assemelham a nenhum dos sinais presentes em outras inscrições encontradas na ilha. Até agora os arqueólogos atribuíram a Creta três diferentes inscrições. A mais antiga lembra os hieróglifos egípcios e consiste em sinais pictóricos: peixes, estrelas, mãos, etc.
Desses hieróglifos antiqüíssimos derivaram duas escritas provavelmente alfabéticas ou silábicas: línear A e linear B. A primeira está presente entre 1800 e 1400 a.C.; a segunda, entre 1450 e 1200 a.C.. Apenas a linear B foi parcialmente decifrada em 1956 pelo lingüista inglês Michael Ventris.
Os caracteres do disco, datado por volta de 1700 a.C., não correspondem a nenhuma letra conhecida, mas há outro mistério mais inquietante ligado a ele: os estudiosos ressaltaram que os sinais foram marcados com peças de madeira. Dessa forma, o disco seria o exemplo mais antigo de impressão com caracteres móveis, baseado em um número fixo de caracteres em relevo, precedendo em 2.500 anos as primeiras tentativas chinesas e em 3.100 a invenção de Gutenberg na Europa.
Do sinal à letra
A descoberta do casal Darnell confirma o procedimento que levou à invenção do alfabeto. Na origem estão as escrituras baseadas em pictogramas – ou ideogramas – ou símbolos que representam de alguma forma um objeto ou um conceito. As escrituras egípcias (chamadas hieróglifos) e sumérias (cuneiformes), inventadas por volta de 3200 a.C., baseavam-se nelas. Com o passar do tempo, os dois sistemas de escrita tornaram-se cada vez mais complexos: o mesmo símbolo podia ser lido seja como conceito, seja como um grupo de uma, duas ou três sílabas que, associadas a outros símbolos, formavam uma palavra. Um verdadeiro quebra-cabeça, ainda típico de algumas maneiras de se expressar por escrito como o japonês ou chinês. A grande simplificação dos inventores do alfabeto foi a de reunir um pequeno grupo de sinais (cerca de 30) e dar a cada um deles a função de representar um único som.
Assim, uma cabeça, que no vocabulário semita se chama rosh, podia representar a letra r; pequena serpente (em semita, nahash) foi usada para escrever a letra n; a palma da mão (kaf) resultou na grafia da letra k; e o símbolo de propriedade (taw) tornou-se a letra t. Apesar das transformações em algumas letras do nosso alfabeto, ainda é possível reconhecer seus símbolos originais.