19/05/2023 - 9:22
Beijos são transformadores, acreditam os contadores de histórias. Um beijo na boca pode transformar um sapo em um príncipe ou resgatar uma bela adormecida de um estado de coma. Simbolicamente, os beijos são um ponto central na história de um personagem – o momento em que eles deixam de ser uma criança para virar um adulto, pronto para o romance e a reprodução. De sapo para um homem.
Nos relacionamentos, o beijo cria um intimidade física que nos afeta talvez mais do que palavras de amor. Os beijos também são sagrados para muitos. As prostitutas, dizem alguns filmes, não beijam na boca – elas guardam esse nível de intimidade para seu verdadeiro amante.
Mas beijar também pode ser um gesto não romântico. Um beijo na testa de uma criança é terno e carinhoso, enquanto um beijo na bochecha pode ser uma saudação. Beijar os pés de alguém ou o chão onde ela pisa é demonstração de subserviência – uma forma de mostrar respeito e reverência aos deuses e tiranos.
O problema é que o ato de beijar fica um pouco nojento quando você dá um zoom na boca. Um beijo de 10 segundos troca cerca de 80 milhões de bactérias orais entre duas bocas. Eca! Além do mais, beijar é uma forma muito comum de espalhar doenças. Então, por que fazemos isso?
O primeiro beijo da humanidade
“A primeira evidência que temos de beijos labiais é de cerca de 2500 a.C.”, diz Troel Arboll, um assiriólogo da Universidade de Copenhague, na Dinamarca. “Ela aparece em um texto mitológico da Mesopotâmia, onde hoje fica o Iraque. O texto descreve dois deuses copulando e se beijando. É definitivamente um encontro sexual”, afirma Arboll.
Arboll e a pesquisadora Sophie Rasmussen, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, escreveram uma nova perspectiva sobre a história antiga do beijo, publicada na revista Science nesta quinta-feira (18/05). Eles têm uma nova teoria de que o beijo romântico se desenvolveu em várias culturas antigas ao longo de vários milênios. Além da Mesopotâmia, os textos também retratam beijos sexuais na Índia e no Egito de pelo menos 1500 a.C. em diante.
Arboll argumenta que sexo e beijos começaram a aparecer com mais frequência à medida que a escrita evoluiu de uma ferramenta administrativa para uma maneira de contar histórias. Beijar, por exemplo, apareceu no épico de Gilgamesh, uma das histórias escritas mais antigas que data de cerca de 2000 a.C.
Como nas interpretações modernas, a intimidade é transformadora – o encontro sexual de Enkidu com Shamhat o transforma de animal em homem. Enquanto o beijo é visto muito cedo em uma espécie de literatura erótica, Arboll também o encontra na documentação cotidiana da antiga vida mesopotâmica.
“Por exemplo, um homem ou uma mulher que não são casados devem se manter afastados e não se beijar. As sociedades estavam tentando controlar o beijo romântico. O fato de o beijo estar sendo controlado significa claramente que era uma prática comum [na vida cotidiana]”, frisa Arboll.
Beijar é algo inato?
Arboll acredita que o beijo romântico pode não ser um comportamento humano inato, mas ter se desenvolvido em sociedades complexas como um comportamento aprendido para parceiros sexuais.
“O beijo não parece ser universal em todas as culturas. Coincide com o aumento da complexidade das interações sociais”, explica, referindo-se tanto a textos históricos quanto a dados mais recentes de que 46% das culturas humanas não beijam no sentido romântico.
Mas alguns antropólogos acreditam que o beijo é inato, pelo menos do tipo não romântico. Comportamentos semelhantes, como lamber e acariciar, são comuns em mamíferos como gatos, cachorros, elefantes e macacos. Os bonobos em particular beijam como os humanos fazem, na boca, para conforto e socialização e mesmo depois de uma briga, para fazer as pazes.
Alguns especialistas acreditam que o beijo romântico pode ter evoluído a partir desse tipo de beijo. O mesmo se passa com os humanos durante seu desenvolvimento. Primeiro experimentamos o amor de nossos pais por meio de beijos e abraços, antes de redirecionarmos esse comportamento para nossos amantes adultos.
Doença do beijo
Novas evidências sugerem que o beijo pode ter desempenhado um papel não intencional na facilitação da transmissão de doenças ao longo da história humana. Patógenos como o vírus do herpes simples 1 (HSV-1) e o vírus Epstein-Barr (também conhecido como doença do beijo ou febre glandular), transmissíveis pela saliva, foram encontrados em restos humanos.
Arboll aponta evidências de que as linhagens do HSV-1 mudaram na Idade do Bronze, possivelmente devido ao beijo romântico cada vez mais comum. Mais recentemente, o beijo também desempenhou um papel na transmissão da covid-19, levando a China a proibir o beijo e com que as pessoas passassem a evitar se cumprimentarem se beijando.
Para Thuy Do, microbiologista de saúde bucal da Universidade de Leeds, no Reino Unido, não é de surpreender que o beijo seja um canal para doenças. “Todos nós temos de 800 a 900 tipos diferentes de micróbios vivendo em nossas bocas”, afirma. “Quando nos beijamos, trocamos muita saliva e todos os tipos de micróbios. Existe o perigo de transmissão de doenças se houver troca de vírus como de hepatite e HSV-1.”
Prazer e sexo
No entanto, o ato de beijar na boca não é tão nojento assim. Thuy Do explica que uma boca saudável precisa de um ambiente microbiano equilibrado, e beijar pode, na verdade, ser uma maneira importante de manter a diversidade saudável de micróbios na boca, trocando micróbios com nossos parceiros.
“Algumas espécies de bactérias, como o estreptococo salivarius, podem ajudar a diminuir inflamações. As pessoas com grande variedade de espécies associadas à saúde tendem a ter bocas mais saudáveis”, explica a especialista. Ela acha que beijar beneficia mais do que apenas a saúde bucal. “A boca é uma porta para todo o corpo – ela se liga ao nosso microbioma intestinal e à pele. Portanto, quando você está beijando, isso pode ter um impacto positivo no microbioma de todo o corpo, afetando até mesmo nosso cérebro e humor”, diz.
Há cientistas que acreditam que o beijo é uma forma de testar parceiros em potencial. Beijar nos permitiria avaliar a compatibilidade genética ou a saúde geral do parceiro, captando pistas biológicas da saliva.
E se a saliva combinar, o sexo pode vir em seguida. As informações táteis da língua e dos lábios desencadeiam em muitas pessoas uma resposta arcaica de todo o corpo à perspectiva de sexo. Os centros de prazer e recompensa do cérebro são ativados, seguidos pela liberação de hormônios como oxitocina, dopamina e serotonina. A pele ruboriza, a frequência cardíaca aumenta e as pupilas se dilatam. Então, é hora de fechar a porta do quarto.