09/11/2017 - 15:25
Patagônia, no Chile, não significa apenas o Parque Nacional Torres del Paine. Nem Punta Arenas, o porto no lado oeste do Estreito de Magalhães fundamental nos tempos pré-Canal do Panamá e hoje base para expedições à Antártida. A parte patagônica chilena começa ao norte quase na latitude de Puerto Montt e da argentina Bariloche. Dentro dessa vasta e pouco conhecida área está, entre os paralelos 44 e 49, um território repleto de belezas e boas surpresas para os visitantes: Aysén, a décima primeira das 15 regiões do Chile.
A natureza explica o isolamento a que Aysén foi submetida em relação ao resto do país. Ao norte, o relevo acidentado dificulta o acesso por terra à X Região, onde fica Puerto Montt. Ao sul, a fronteira com a XII Região, onde estão Punta Arenas e Torres del Paine, está sob o Campo de Gelo Sul (com cerca de 16.800 km2, dos quais 14.200 km2 no Chile), o segundo maior do mundo fora da zona polar. Com isso, ir da capital, Santiago, a Aysén sem sair do Chile só é possível por avião ou barco – por terra, é preciso usar o território argentino, cruzando duas vezes os Andes.
O clima também foi um obstáculo para o povoamento da região. O litoral, quase desabitado e ocupado por bosques temperados, é muito chuvoso, com média de 3.500 mm de precipitação anual nas ilhas costeiras (a de São Paulo, por exemplo, fica em torno de 1.400 mm). Rumo ao leste, as chuvas diminuem, e em Balmaceda, na divisa com a Argentina e perto dos Andes, o índice pluviométrico cai a 588 mm (semelhante ao do Semiárido) e a vegetação baixa é típica de estepe.
O primeiro europeu a avistar a região foi Fernão de Magalhães, em 1520, mas ele e a maior parte dos que o seguiram se limitaram a navegar pela costa – só no século 18 se intensificaram as expedições àquelas terras, sobretudo científicas (o inglês Charles Darwin foi um dos pesquisadores que passaram por lá). Durante séculos Aysén foi habitada unicamente por alguns grupos indígenas, cujo contato com os exploradores brancos só lhes trouxe doenças, alcoolismo e escravidão. Os primeiros colonizadores de fato chegaram apenas a partir das últimas décadas do século 19, vindos do arquipélago de Chiloé, ao norte, para trabalhar em grandes estâncias arrendadas pelo governo a companhias de pecuária e fazendeiros estrangeiros.
Pequenas propriedades
Com o tempo, a distância dos maiores centros consumidores do país e as dificuldades de explorar economicamente o acidentado terreno desestimularam esses empresários. A maioria deixou a região, e as grandes propriedades se limitaram à parte leste do território. Os imigrantes, porém, permaneceram, e a partir daí o governo chileno resolveu apoiar um modelo baseado em pequenas propriedades dedicadas à agropecuária. Ele predomina ainda hoje, com pequeno impacto ambiental, mas nem sempre foi assim. Entre os anos 1930 e 1950, o governo estimulou uma espantosa estratégia de atear fogo aos bosques nativos a fim de abrir espaço para a criação de gado, e a erosão e os deslizamentos de terra derivados disso são perceptíveis ainda hoje em certas áreas.
Região menos povoada do Chile, Aysén abriga cerca de 108 mil pessoas para quase 109.000 km2, média de quase um habitante por quilômetro quadrado – 25% da registrada na Amazônia brasileira. Viajar por lá significa a possibilidade de percorrer dezenas de quilômetros sem ver uma única pessoa. A primeira cidade criada na região, Puerto Aysén, só surgiu em 1924. Fundada cinco anos depois, a capital e maior cidade aysenina, Coyhaique, tem apenas cerca de 63 mil moradores.
Se é um obstáculo para o desenvolvimento econômico tradicional, o vazio humano soa como música quando se fala de turismo ligado à natureza. Por esse ângulo, Aysén é um santuário com poucas marcas da ação do homem, resguardado por vários parques nacionais, reservas, monumentos naturais e áreas silvestres protegidas. Quem gosta de atividades como caminhada (inclusive por geleiras), cavalgada e ciclismo se sente no paraíso. Rios caudalosos e repletos de peixes como a truta seduzem amantes de canoagem, rafting e pesca esportiva.
Eixo de progresso
Existem ainda incontáveis lugares de grande beleza cênica. A relação certamente inclui, além dos parques, a Catedral e as Capelas de Mármore do Lago General Carrera (veja quadro ao lado), a Laguna San Rafael, a Reserva Nacional Cerro Castillo, fiordes e glaciares como o Exploradores. Hotéis pequenos e acolhedores ajudam a conservar a aura de uma região ainda intocada.
Embora até hoje não esteja completa e tenha largos trechos sem asfalto, a Carretera Austral, rodovia iniciada nos anos 1970, permite que os viajantes percorram Aysén de norte a sul. A estrada estimulou o aumento no fluxo de visitantes, e desde os anos 1990 os governos nacional e regional têm investido mais intensamente no potencial turístico local. A aposta tem dado certo: de 1990 a 2012, o ingresso de turistas chilenos e estrangeiros na região subiu quase 250% e segue crescendo. Em 2016, cerca de 213 mil pessoas visitaram Aysén, 27% dos quais estrangeiros.
O investimento da região no turismo enfrenta alguns fatores adversos. Um deles é o aquecimento global, que tem reduzido gradualmente o tamanho dos glaciares. Na Geleira Exploradores, por exemplo, rochas e pequenos lagos já substituem na paisagem a parte desaparecida do manto de gelo. Em outra geleira, a Leones – formadora do lago homônimo que alimenta um pequeno tributário do Lago General Carrera –, o gelo está cada vez menos em contato com a água do lago, o qual, por sua vez, reduz progressivamente sua vazão para o rio. Com isso, passeios de barco até os arredores da geleira estão ficando uma atividade cada vez mais complicada.
Águas cobiçadas
Outro risco está ligado à riqueza hídrica de Aysén. A área metropolitana de Santiago e a poderosa indústria de mineração de cobre, no norte do Chile, precisam cada vez mais de energia, que os rios ayseninos poderiam facilmente suprir. Lastreadas numa legislação frágil da era Pinochet, que permitia a privatização de bens comuns como a água dos rios, empresas de eletricidade planejaram megaempreendimentos na região.
A principal iniciativa nesse sentido veio da HidroAysén, parceria das maiores geradoras de energia do país, a ítalo-espanhola Endesa Chile e a Colbún (empresa chilena ligada ao ramo de mineração), criada em 2006: ela pretendia inundar 5.900 hectares de terra e erguer cinco hidrelétricas nos rios Baker e Pascua, com capacidade somada de 2.750 megawatts. Para ligar essas hidrelétricas à rede chilena previa-se a construção de linhas de alta tensão com cerca de 3 mil km de comprimento, que representariam um considerável impacto ambiental adicional.
Embora apoiados pelos mais importantes setores econômicos chilenos e do governo, e de personalidades como o megaempresário Sebastián Piñera (presidente do país entre 2010 e 2014), os empreendimentos enfrentaram uma feroz oposição de ambientalistas, intelectuais e de pelo menos 60% da sociedade chilena. Segundo estes, os projetos fariam Aysén perder seu excepcional status ambiental e turístico apenas para satisfazer as necessidades das indústrias do norte, boa parte delas controlada por capital estrangeiro.
O Conselho de Ministros do Chile autorizou oficialmente a HidroAysén a tocar o projeto adiante em 2011, mas não resistiuà pressão e revogou a permissão em meados de 2014, já no governo de Michelle Bachelet. Mas todo o cuidado é pouco: Piñera é o favorito para substituir Bachelet nas próximas eleições, o que torna possível que os projetos hidrelétricos voltem a assombrar Aysén num futuro próximo.
Templos naturais
Localizadas próximas às margens do Lago General Carrera, a Catedral e as Capelas de Mármore são curiosas e coloridas formações de carbonato de cálcio transformadas em monumento nacional em 1994. Produzidas pela erosão das águas nas escarpas que cercam o lago, essas ilhotas podem ser visitadas pelos turistas em pequenos barcos que saem da cidadezinha de Puerto Río Tranquilo, a 223 km de Coyhaique.