01/02/2009 - 0:00
A noite estrelada no sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul.
Entretido no meio das ruínas, Augusto Gaona, 57 anos, nem percebeu que já passava da hora de ir para casa. Reparava a sustentação de uma das antigas pilastras da igreja principal, quando sentiu algo passar por trás de si e roçar sua perna. Olhou ao redor… nada. Estava sozinho dentro de um dos maiores complexos históricos e arquitetônicos de toda a região missioneira da América Latina: as ruínas da redução jesuítico-guarani de Santíssima Trinidad del Paraná, no Paraguai.
Há 40 anos ele é o zelador desse valioso patrimônio histórico e já ganhou um título honorário de arqueólogo por sua devoção ao lugar. “Estou aqui todos os dias, mas me sinto sempre um turista. Cada vez que olho para isso tudo, percebo algo que não tinha notado antes”, diz. Nos despedimos de Augusto com as primeiras estrelas apontando no céu. Dissemos que voltaríamos mais tarde ao sítio arqueológico para produzir fotos noturnas,ao que ele imediatamente nos adverte: “Cuidado com a movimentação por aqui à noite. Se vocês virem alguma coisa, não tenham medo.
Apenas deixem passar. Eles não fazem mal a ninguém.” Eles? Uma energia inexplicável ronda a região missioneira. Da mesma maneira que todos os demais sítios arqueológicos existentes na América Latina, ela está se tornando ponto de peregrinação para espiritualistas de variadas crenças.
No alto, a catedral restaurada de Santo Ângelo Custódio, em Santo Ângelo (RS). À direita, as ruínas de Santissima Trinidad del Paraná, no Paraguai.
As ruínas de Santíssima Trinidad del Paraná são parte de uma história de 400 anos que começou, para nós, no Rio Grande do Sul. Determinados a conhecer mais sobre a epopeia missioneira e a montar o quebra- cabeça formado pelos 30 povos que ela catequizou na América Latina, partimos de um lugar familiar para a maioria dos gaúchos: o sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, no município de São Miguel das Missões, a 500 quilômetros de Porto Alegre.
Acima, a Fonte Missioneira, em São
Miguel, que jorra água pura há 300 anos
E que alento é rever o lugar considerado pela Unesco o único Patrimônio Histórico e l do Sul do Brasil! Nos próximos dias visitaríamos outros três sítios declarados patrimônios mundiais na Argentina e Paraguai, mas este certamente tem um sabor especial, por ser nosso.
De todos, São Miguel não é nem o maior nem o mais completo, mas é um dos mais bonitos. A fachada da igreja permanece quase intacta e é a única que mantém de pé a torre do sino, erguida em arenito. Na sua frente fica o Museu das Missões, projetado pelo arquiteto Lúcio Costa. No interior da edificação de paredes envidraçadas está tudo o que restou do barroco missioneiro em terras brasileiras. São mais de 100 imagens sacras em pedra e madeira, pias batismais, bases de colunas e um sino de ferro, que tocava todos os dias na torre do campanário.
Acima, mãos guaranis esculpem instrumentos musicais na Aldeia Tekoa Koenju, em São Miguel (RS).
SEGUNDO A HISTORIADORA
Nadir Damiani, mestre em história missioneira e coordenadora de estudos missioneiros da Universidade de Santo Ângelo, viviam ali aproximadamente 6.500 índios. A povoação, que viria a tornarse a capital dos Sete Povos, foi fundada em 1687, mas a igreja só seria concluída em 1745.
Cerca de um quilômetro distante das ruínas está a Fonte Missioneira, que jorra água pura há 300 anos. Atrás da igreja, onde originariamente eram cultivadas as quintas, pessegueiros ainda florescem enfileirados na primavera.
Abaixo, um pequeno museu a céu aberto, nas ruínas de Trinidad, no Paraguai; e o cotidiano das crianças guaranis na Aldeia Tekoa Koenju, em São Miguel.
As centenárias figueiras, típicas do clima subtropical gaúcho e que podem viver por mais de 500 anos, escondem paredes e colunas sob suas grandes raízes. Ao lado de São Miguel, a cidade de Santo Ângelo está edificada sobre as ruínas da última das reduções fundadas pelos jesuítas. Escavações e plantas da época revelam particularidades, como a construção da igreja.
Ao contrário de todas as outras, que tinham sua frente voltada para o norte, a Catedral de Santo Ângelo Custódio é voltada para o sul. “Isso é o indício de que o período missioneiro já estava chegando ao fim e que aquela seria a última povoação”, afirma a arqueóloga Raquel Rech, que coordena trabalhos de escavação na cidade. É em Santo Ângelo o ponto de chegada de muitas peregrinações na região.
Os herdeiros de Sepé Tiaraju
Uma das particularidades da região das Missões é que sempre há comunidades guaranis nos arredores das ruínas. Mas os índios não são catequizados, como os que viviam nas reduções, e preservam, na medida do possível, os costumes originais de seu povo. Uma das mais organizadas é a aldeia Tekoa Koenju (alvorecer, no idioma guarani), no interior de São Miguel das Missões. Na reserva demarcada pela Funai, vivem cerca de 200 pessoas que mal falam português. Subsistem da agricultura, caça e do artesanato que vendem para os turistas nas ruínas. Há três anos, o coral da
aldeia gravou o CD Viver Guarani, com 13 músicas cantadas pelas crianças e acompanhadas pelo chocalho e por instrumentos como violão e violino – legado dos jesuítas. Chegar de surpresa na Casa de Passagem – local construído atrás do sítio arqueológico para abrigar as famílias que vendem o artesanato – é deparar-se com um mundo novo. Ao redor do fogo no chão,
adolescentes e jovens mães com seus filhos nos braços não são muito bons em receber visitantes. Tímidos, eles não gostam de falar e sentem-se retraídos pelas perguntas de um jornalista. O nome? Eles inventam na hora. Idade? Não sabem ao certo. De onde vieram? Longo silêncio.
Sérgio Karai, de 16 anos (nome e idade que podem mudar a cada conversa), estava mudo até que perguntei a ele sobre o cacique Sepé Tiaraju, figura lendária das
Guerras Guaraníticas considerado herói no Rio Grande do Sul. “Meu pai conta a história que os
antepassados contaram para ele. Dizem que o cacique Sepé foi morto, mas é mentira. Ele se escondeu.”
Se escondeu onde? “No céu.” E fim de papo.
SÉCULOS ANTES
de o Mercosul ser criado, os povos missioneiros já tratavam os territórios de Brasil, Paraguai e Argentina como únicos. Para nós, seria muito mais fácil imaginar esse mundo sem amarras se não precisássemos ficar horas nas aduanas. Mas o sacrifício é recompensado. No Paraguai, a primeira parada é o complexo de ruínas de Jesus de Tavarangüe, na cidade de mesmo nome, em Itapuá.
Ao redor da praça, as fundações das casas dos índios, dos padres e da escola dão uma idéia mais precisa de como era a vida por ali antigamente. Nos restos da igreja que nem chegou a ser concluída – os jesuítas foram expulsos antes do seu término -, observa- se o refinamento das mãos dos escultores guaranis.
A vida nas reduções
As povoações são chamadas de “reduções” porque era nesses complexos urbanos que os indígenas eram “reduzidos” em seus hábitos e costumes para serem catequizados. As reduções jesuítico-guaranis se organizavam sempre da mesma forma:
IGREJA – era construída com a porta voltada para o Norte (com exceção de Santo Ângelo Custódio) e tudo acontecia em torno dela. Na frente, uma grande praça era palco de eventos e reuniões.
CASAS – As dos índios eram comunitárias e ficavam ao redor da praça central, enfileiradas e cobertas. As dos padres ficavam ao lado da igreja. Os caciques moravam em casas próximas à porta do templo.
ESCOLA – Todas as crianças frequentavam a escola, onde aprendiam seu próprio idioma e o espanhol, além de música, arte e história. Os meninos eram treinados, conforme suas habilidades, para arquitetura, marcenaria, siderurgia ou agricultura. As meninas aprendiam bordado, fiação e artesanato.
CABILDO – Era o parlamento da redução, onde caciques e padres se reuniam para discutir os rumos do trabalho ou resolver as pendências. Alguns historiadores afirmam que os religiosos manipulavam os caciques e, assim, obtinham sempre a concordância de todos os membros do cabildo.
COTY GUASSU – Ou cotiguaçu, era a casa onde viúvas, velhos e órfãos eram amparados. Eles obtinham o sustento sem precisar trabalhar.
QUINTAS E PASTOS – As reduções produziam tudo o que era necessário ao seu consumo. Em seus arredores, se plantavam milho, mandioca, trigo e erva-mate e se criavam bois e ovelhas.
Acostumados a brincar nas ruínas, os estudantes Lucas, Jorge e Ever tomam tererê – bebida típica paraguaia à base de erva-mate, quase um chimarrão gelado – sentados nas janelas do teto onde deveria estar a torre do sino.
Dali, os meninos descem para gritar no interior da igreja. Soltam a voz e aproveitam a acústica que serviria aos numerosos corais sacros formados por índios. Em outro ponto da enorme edificação, uma freira aconselha uma peregrina. A expressão das duas mostra que nem se importam com os gritos impertinentes dos garotos. Com tanto para descobrir, fica difícil prestar atenção na voz baixa da arqueóloga que guia os visitantes.
Seguimos para a redução de Santíssima Trinidad, que fica a 20 quilômetros das ruínas de Jesus de Tavarangüe. Uma suave música sacra recebe os que chegam e embala a emoção de ver o mais completo dos sítios. As casas dos índios, a morada dos padres, a escola, o cabildo, o cotiguaçu, a primeira igrejinha, tudo está preservado.
A arqueóloga Raquel Rech fazendo escavações ao redor da Igreja em Santo Ângelo (RS)
Fundada em 1706, Trinidad chegou a abrigar 4.800 índios, sob o comando de dois padres. A igreja principal foi projetada por João Batista Primolli, o mesmo de São Miguel Arcanjo, e concluída em 1763. Na nave central estão enfileiradas as tumbas de 60 caciques guaranis que administraram a redução junto com os jesuítas.
“Por serem catequizados e líderes de seu povo, foram sepultados diante do altar principal. Em 1983, uma das tumbas foi aberta para comprovar o que até então era somente uma lenda. O esqueleto desenterrado está exposto no museu nos fundos da igreja e os demais sepulcros permanecem intocados”, explica o historiador Carlos Bedoya, catedrático em história pela Universidad Católica del Paraguay.
As ruínas de Jesus de Tavarangüe, no Paraguai
Em território argentino, nosso destino é a província de Misiones, na cidade de San Inácio. Ali, em 1940, o governo encontrou um complexo de ruínas do que havia sido uma das reduções mais prósperas, San Inácio Miní, escondida sob toneladas de terra e mato fechado. Demorou oito anos para que o sítio arqueológico fosse restaurado e preparado para a visitação. Diferentemente das demais, San Inácio tem bosques ao seu redor, que guardam fundações, colunas e paredes ainda não escavadas.
O Museu das MIssões, em São Miguel (RS).
ALÉM DAS ESTRUTURAS
bem conservadas, as duas paredes que restaram da fachada da igreja são uma bênção para os olhos. Flores, imagens sacras e símbolos da Igreja católica, da coroa espanhola e da ordem dos jesuítas ornam a entrada principal.
É quase possível enxergar a rotina dos 4.300 índios que viviam ali. Depois de dias de caminhada entre paredes, pedras e histórias, se vislumbra nas ruínas a sociedade igualitária e unificada que muitos ainda sonham para a América Latina.
O passado missioneiro afirma que essa idéia foi possível um dia, mas não responde se ela poderá se repetir.
SERVIÇO
Para saber mais sobre a região missioneira na América Latina, acesse www.rotamissoes.com.br