15/12/2023 - 14:25
Depois de ter se livrado de acusações de abuso sexual, o ator duas vezes vencedor do Oscar passou a trabalhar em filmes independentes de baixo orçamento na Europa, onde a indústria acolhe atores e diretores “cancelados”.”Não há segundo ato nas vidas americanas”, diz a célebre frase do escritor F. Scott Fitzgerald. É possível, porém, que Kevin Spacey possa discordar disso.
O ator americano, duas vezes vencedor do Oscar, tenta dar início a um novo capítulo em sua carreira, após cair em desgraça ao ser acusado de múltiplos casos de abuso sexual no auge do movimento #metoo, em 2017.
Para utilizar uma linguagem atual, Spacey foi rapidamente “cancelado”.
Ele foi dispensado por seu agente em Hollywood e demitido da série de grande sucesso da Netflix House of Cards. O serviço de streaming também engavetou a biografia de Gore Vidal, no qual Spacey fazia o papel do escritor e provocador político americano, cuja produção foi encerrada semanas antes das primeiras acusações se tornarem públicas.
No ano passado, Spacey perdeu na Justiça uma tentativa de derrubar uma decisão de um tribunal que o condenou a pagar 31 milhões de dólares (R$ 152 milhões) à produtora MRC, de House of Cards, em consequência de conduta sexual inadequada envolvendo jovens membros da equipe nos bastidores da série.
Em um episódio que se tornou bastante conhecido, o diretor de cinema Ridley Scott e o estúdio cinematográfico Sony Pictures gastaram milhões de dólares em custosas refilmagens do drama histórico de 2017 Todo dinheiro do mundo, removendo digitalmente as cenas de Spacey do filme e substituindo-o pelo ator Christopher Plummer no papel de J. Paul Gety.
Spacey sempre alegou inocência e, depois de ser absolvido em alguns dos processos que pesavam contra ele – outros foram removidos por promotores ou engavetados por falta de provas –, o ator passou a planejar seu retorno às telas de cinema.
Mais sou menos.
Relegado a filmes de categoria “D”
Não espere ver tão cedo Spacey protagonizando uma superprodução de Hollywood ou um filme da Marvel.
Ao contrário, o astro de Os suspeitos e Beleza americana – pelos quais Spacey foi agraciado com o Oscar – vem se humilhando em filmes de categoria “D”, com pequenos papéis em produções independentes e obscuras de baixo orçamento
No ano passado, ele atuou em um papel secundário no filme L'uomo che Disegnò Dio (O homem que desenhou Deus, em tradução literal), um drama italiano dirigido e estrelado por Franco Nero. A produção não teve lançamento fora da Itália e as falas de Spacey foram dubladas por um ator local.
No próximo mês, ele poderá ser ouvido – mas não visto – no filme Control, um thriller britânico onde ele atua como uma voz ameaçadora em um sistema de navegação por GPS.
Em 2024, será possível tentar ver o ator de Los Angeles – cidade proibida no filme Peter Five Eight, uma comédia de ação britânica que terá lançamento limitado. Ainda assim, seria prematuro chamar qualquer um desses filme de um “retorno triunfal de Spacey às telas”.
Europa acolhe os “cancelados”
Chama atenção o fato de as ofertas de trabalho a Spacey virem todas da Europa, onde a indústria cinematográfica é conhecida por ser permissiva no que diz respeito a comportamentos ruins, sejam estes reais ou supostos.
O diretor Roman Polanski, que passou 45 anos produzindo filmes na França graças a sua cidadania francesa, conseguiu evitar a extradição para os Estados Unidos em um caso ainda em aberto no qual é acusado de manter relações sexuais com uma menor de idade.
O último filme de Polanski, The Palace, foi exibido este ano na 80ª edição do Festival de Cinema de Veneza, assim como Golpe de sorte de Woody Allen, outro cineasta com reputação manchada por acusações de condutas inadequadas por parte de sua própria filha adotiva Dylan Farrow.
Allen descobriu ser mais fácil obter financiamento e distribuição para seus filmes na Europa do que nos EUA, onde os olhares são mais críticos.
O ator Johnny Depp, que foi excluído da franquia Animais fantásticos em meio a alegações de abusos maritais por parte de sua ex-esposa, Amber Heard, foi contratado para o papel do rei Luis 15 no drama francês de época Jeanne du Barry – a favorita do rei, que estreou no Festival de Cinema de Cannes.
Produções independentes
A bem da verdade, porém, a indústria cinematográfica, particularmente o setor independente de baixo orçamento, tem reputação de ignorar questões éticas quando se trata de ganhar dinheiro.
Bem antes do #metoo, Mel Gibson foi supostamente cancelado em razão de seus rompantes públicos de fúria nos quais utilizou linguagens homofóbicas, racistas e antissemitas. Mas, apesar de ter se tornado – e ainda ser – persona non grata durante algum tempo, ele nunca parou de trabalhar.
É possível que você não tenha vistos seus filmes de maior destaque após o “cancelamento”: Plano de fuga, Machete Mata e Na sombra da lei. Mas, essas produções foram de fato realizadas e Gibson foi pago para atuar nelas.
A recente onda de indignação com a participação de Gibson na minissérie de ação O continental: do mundo de John Wick serve de para demonstrar de que modo a maior parte da mídia está focada em Hollywood. Para os fãs de produções medíocres independentes, Mel Gibson jamais deixou de estar presente.
Kevin Spacey, tampouco. Enquanto houver cineastas independentes que avaliem que colocar a frase “duas vezes vencedor do Oscar” nos cartazes e trailers de seus filmes possa aumentar as vendas ou atrair mais acessos nos serviços de streaming por parte antigos fãs de House of cards, ele continuará a atuar em filmes, mas de um determinado tipo. Só não vá chamar isso de “retorno triunfal”.