Em entrevista à DW, porta-voz do Greenpeace critica sanção por Lula de lei que flexibiliza a produção e o uso de agrotóxicos no país, apesar de ações do governo em defesa do meio ambiente e da agricultura familiar.O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou nesta quinta-feira (29/12) o projeto de lei 1459/2022, que altera e flexibiliza as regras para uso de agrotóxicos no Brasil. A legislação, defendida por membros da bancada ruralista no Congresso, sofre críticas de organizações ambientalistas, que apelidaram o texto de “pacote do veneno”.

Lula vetou 14 pontos do texto originalaprovado pelo Senado no fim de novembro e que teve a relatoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES). Entre as mudanças, devolveu ao Ibama e à Anvisa a participação no processo de análise de agrotóxicos à espera de aprovação – no texto aprovado, essa avaliação era feita apenas pelo Ministério da Agricultura e Agropecuária.

Além disso, o presidente também vetou o registro temporário de novos agrotóxicos permitidos nos países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que não fossem analisados no tempo previsto pelos órgãos brasileiros.

A proposta gerou mal-estar entre membros do governo logo no início do ano, especialmente entre o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

Em entrevista à DW, Mariana Campos, porta-voz do Greenpeace Brasil, afirma que o projeto de lei representa um “um conjunto de maldades danoso ao meio ambiente e à saúde da população”. “Diversas organizações apostavam em um veto integral do presidente Lula e ele não veio”, diz.

Campos ressalta que os principais retrocessos estão na permissividade de substâncias causadores de má formação fetal e mutagênese, além dos prazos mais curtos de avaliação dos produtos – de 60 dias para agrotóxicos com fórmulas idênticas para outros já aprovados, e de 24 meses para novas substâncias.

“Está claro o choque de interesses dentro do governo. Especificamente falando desse projeto de lei, trata-se de uma contradição. Em novembro, durante o Congresso Brasileiro de Agroecologia, o governo federal anunciou a retomada do Pronara, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos. Esse mesmo governo foi à COP28 com uma agenda verde e anunciando uma série de propostas em diálogo com as proposições da ONU em relação à sustentabilidade dos sistemas alimentares no longo prazo”, apontou a porta-voz do Greepeace.

Ela ressaltou ainda que a organização deve ajuizar no Supremo Tribunal Federal uma ação pedindo a derrubada da nova lei, sob o argumento de que o texto desrespeitaria preceitos da Constituição. “É a alternativa que nos resta diante de um Congresso que está fazendo escolhas tão prejudiciais à sociedade.”

DW: Como avalia o projeto sancionado pelo presidente Lula?

Mariana Campos: Não chamamos esse PL de Pacote do Veneno à toa. Ele é um conjunto de maldades danoso ao meio ambiente e à saúde da população. É importante mencionar que, desde que o senador Fabio Contarato pegou a relatoria e iniciou essa negociação do Congresso com o governo, ele tentou trazer melhorias ao texto. Mas esse projeto aprovado pelo Senado no fim de novembro não nos atendia e nós deixamos isso claro. Agora, diversas organizações apostavam em um veto integral do presidente Lula e ele não veio. Reconhecemos que houve algumas melhorias com os vetos, algo como uma mitigação de danos, mas ainda existem problemas muito graves nessa lei sancionada.

Quais são os principais pontos de preocupação?

O principal é possibilidade de termos substâncias cancerígenas e mutagênicas. A legislação que estava em vigor proibia ingredientes ativos que causam donos severos à saúde, como câncer, malformação fetal e mutações genéticas associadas ao consumo e exposição aos agrotóxicos. Agora, o texto aprovado usa um argumento falacioso e mentiroso para garantir o registro dessas substâncias ao citar o termo “risco inaceitável” à população. O projeto não apresenta o que é “risco inaceitável” ou “risco aceitável”. Esse consumo é aceitável para quem? Isso é uma afronta à saúde da população brasileira.

Outro ponto que o Lula não vetou está relacionado aos prazos, que ficaram muito céleres para o registro dos agrotóxicos. Essa rapidez pode comprometer a avaliação toxicológica e ambiental dos produtos. Além disso, há ainda a fabricação de agrotóxicos no Brasil apenas para exportação. Eles não podem ser usados no país e isso é bom, mas ainda assim significam um perigo para quem trabalha com essas substâncias. São proibidos, mas continuam sendo manipulados, e isso pode gerar risco para comunidades no entorno das fábricas onde são desenvolvidos ou no transporte dos mesmos.

Há possibilidade de contestar a lei no Supremo Tribunal Federal?

Pretendemos apresentar uma ação porque a legislação fere os direitos a um meio ambiente saudável, à vida e à saúde pública. Há um arcabouço legal que corrobora nosso argumento. É algo que precisa de muita articulação com outras entidades e partidos políticos. Mas, assim que começarmos 2024, vamos fortalecer essa articulação junto ao STF. Infelizmente teremos que judicializar a questão, porque é a alternativa que nos resta diante de um Congresso que está fazendo escolhas tão prejudiciais à sociedade.

Por que é importante manter a participação da Anvisa e do Ministério do Meio Ambiente na autorização de uso de agrotóxicos?

O poder estava nas mãos da Agricultura, ao coordenar todos os processos relacionados aos agrotóxicos. Nós chamamos a repartição entre Agricultura, Ibama, representando o Meio Ambiente, e Anvisa, representando a Saúde, de tripartite, por funcionar como um equilíbrio entre as diferentes visões da sociedade, cada um deles com a sua responsabilidade e especialidade.

Ao Ministério da Agricultura compete um mundo de coisas referentes à economia, à agropecuária e uma série de interesses. A presença do Ibama serve para garantir a proteção ambiental e a vedação a qualquer tipo de retrocesso nesse segmento. É a vigilância do solo, do ar, da água, algo que não necessariamente será feito pela pasta da Agricultura. A Anvisa tem um processo análogo, de garantia ao direito à vida e à saúde. Cabe a ela olhar a toxicologia das substâncias e garantir que a população não vai se contaminar com produtos. Cada corpo vai representar um interesse diferente, mas sempre a favor dos interesses da sociedade.

O que acontece, no entanto, é que o Ministério da Agricultura está envolto em questões políticas, da força do agronegócio e da bancada ruralista no Congresso. Se não tivermos as outras duas partes (Ibama e Anvisa) participando de maneira igualitária nessa discussão, como por exemplo na reavaliação de autorização de agrotóxicos, corremos o risco de cairmos em um buraco ainda maior com a diminuição de proteção ao meio ambiente e à saúde pública em prol de aspectos econômicos.

Há algum outro veto do presidente que mereça destaque?

Creio que vale a pena citar o processo de reanálise das substâncias, que é o registro temporário. O que os ruralistas tentaram fazer é implementar um registro temporário de agrotóxicos que não fossem aprovados dentro do prazo estabelecido. Não se pode autorizar algo que não foi analisado. Esse é o princípio da precaução que não deve ser abandonado quando estamos falando de saúde pública.

Como esse texto reflete as disputas dentro do governo e no Congresso em relação à pauta ambiental?

A avaliação que nós fazemos é que o governo Lula vem nesse terceiro mandato com um discurso forte de agenda verde, e de fato houve melhorias, por exemplo no desmatamento. Se compararmos com os últimos anos, estamos andando para frente. O Brasil voltou a ter um papel, inclusive internacional, nesse tema. Na parte da agricultura, também precisamos mencionar a retomada de políticas importantes, como o Plano Safra voltado para agricultura familiar e o retorno do Ministério do Desenvolvimento Agrário. São marcos importantes.

Dito isso, está claro o choque de interesses dentro do atual governo. Especificamente falando desse projeto de lei, trata-se de uma contradição. No mês passado, por exemplo, durante o Congresso Brasileiro de Agroecologia, o governo federal anunciou a retomada do Pronara, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos. Esse mesmo governo foi à COP-28 com uma agenda verde e anunciando uma série de propostas em diálogo com as proposições da ONU em relação à sustentabilidade dos sistemas alimentares no longo prazo. E agora aprova esse Pacote do Veneno. É uma contradição.

E o Congresso pode derrubar os vetos na volta do recesso no ano que vem.

Se isso acontecer, será um cenário de forte retrocesso na proteção ambiental e uma permissividade completa no uso de agrotóxicos no Brasil.

Nesse contexto de aprovações para flexibilizar a aprovação de agrotóxicos, dos embates com o Congresso, como o governo deve agir institucionalmente?

Se falarmos como ação do Executivo, o antídoto é o Pronara, porque ele é o programa que tem a centralidade para a diminuição do consumo de agrotóxicos no país. Não podemos esquecer que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. O Pronara, que traz mecanismos de controle de contaminação da água, dos alimentos, é fundamental, e estava parado. Retomar esse programa é fundamental, até mesmo para que o governo federal ganhe um pouco de crédito com a sociedade sem precisar dialogar com o Congresso.

Além disso, tem os programas de compras institucionais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos, que já têm mecanismos de apoio à agricultura familiar e estímulos à agricultura agroecológica. Fortalecer esses mecanismos é uma maneira importante de acelerarmos essa transição que tem por objetivo diminuir a utilização de agrotóxicos. Mas, para que isso aconteça, a agricultura familiar precisa ter subsídio e assistência técnica. São políticas que devem ser consistentes para alterar o cenário para os próximos anos.