01/03/2009 - 0:00
Faz muitos anos que a professora Irenilza de Alencar Naas realiza pesquisas com criações de aves, suínos e bovinos pela Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp. E sempre se intrigava quando o granjeiro, depois de ouvir o piado dos pintinhos do novo lote, reclamava: “Ih, essa ninhada não vai dar certo.” O mesmo acontecia com os suínos, quando um grunhido diferenciado atentava o tratador para algo de errado. “É natural que quem trabalhe por tanto tempo dentro do galpão tenha o ouvido treinado para perceber nuances no som emitido pelos animais.”
O desenvolvimento de um software capaz de interpretar a vocalização de aves, suínos e bovinos, identificando se estão com frio, fome, medo ou frustração, é um dos resultados das pesquisas orientadas por Irenilza desde que ela passou a atuar com zootecnia de precisão e, mais precisamente, com a questão do bem-estar animal. “A zootecnia de precisão é uma área que concentra o olhar nos detalhes, já que o lucro da produção hoje está nos centavos.”
Segundo a pesquisadora da Feagri, os países compradores começam a questionar cada vez mais a forma como o Brasil produz a carne que exporta. “O animal pode ser criado em boas instalações e apresentar ótima produtividade, mas isso não significa que tenha deixado de passar fome, sede, frio ou estresse em alguma etapa do sistema de produção. A questão que se apresentava era como aferir o bem-estar animal efetivamente, e não subjetivamente.”
A idéia inicial foi encontrar um meio de compreender a “fala”, a postura ou o comportamento dos animais que indicasse condições de conforto e desconforto. Irenilza Naas e Daniella Moura, também professora da Feagri, envolveram muitos estudantes em vários projetos enviados à Fapesp e ao CNPq. “Além de complexo, era um tema inédito, estudado apenas por mais dois grupos nas universidades de Louvain (Bélgica) e de Tsukuba (Japão). Havia poucas informações.”
A escassez de fontes fez com que os pesquisadores, curiosamente, buscassem inclusive estudos sobre o choro de crianças no período neonatal, supondo que um recém-nascido apresentaria os mesmos problemas de vocalização que um animal. Eles recorreram também a pesquisas focando a interpretação de sons de animais selvagens, a exemplo dos pássaros do professor Jacques Villiard, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, que tem alguns trabalhos nesse sentido.
Compreendidos certos princípios da “fala” dos animais, os pesquisadores da Feagri buscaram uma fundamentação científica para o conhecimento adquirido pelos tratadores em sua lida diária. “Como por brincadeira, passamos a gravar sons de aves, bovinos e suínos em várias idades, expandindo depois o espectro do som para verificar as variações. E pudemos, realmente, perceber diferenças de espectro para diferentes situações.”
Ainda assim, como observa Irenilza, havia necessidade de mecanizar esse processo de identificação, a fim de que ele pudesse ser utilizado por todo criador de animais e não apenas por um especialista. “Veio então a ideia do software, com o qual é possível interpretar os sons de maneira simples. Ele já foi utilizado para várias espécies e só não solicitamos a patente porque ainda estamos fazendo alguns ajustes para facilitar mais o seu manejo pelo usuário.”
Os testes com o software permitiram aos pesquisadores identificar, em aves e suínos, sons associados a medo, dor, frustração e fome, com os espectros correspondentes. “Confirmamos aspectos corriqueiros apontados pelo granjeiro, como o fato de o pintinho piar mais (e agudamente) quando está com frio, possivelmente chamando a mãe para aquecê-lo, insatisfeito com as condições do incubatório.”
Outra constatação foi de que a porca chama os leitões para mamar e que, quando isso acontece, o desmame ocorre de maneira mais tranquila. “Gravamos e reproduzimos o chamado em ambientes onde estavam outras porcas. Bastava o som ambiente para que os leitões atendessem prontamente e mamassem mais. Há efetivamente uma comunicação entre os animais, o espectro mostra ‘falas’ que variam conforme a situação.”
A docente da Feagri adianta que já pensa na utilização da técnica para determinação de estro (época em que a fêmea está pronta para ser inseminada), como no caso dos suínos e bovinos. “Uma das consequências do calor é o estro silencioso. A vaca precisa ser inseminada no dia correto e, se não sabemos que está em estro, podemos perder o ciclo, o que representa prejuízo econômico. Estamos verificando se o estro resulta em alguma manifestação vocal passível de reconhecimento, o que ofereceria uma indicação a mais sobre o momento certo da inseminação.”
O trabalho do grupo de Irenilza Naas foi publicado no Exterior no segundo semestre do ano passado e em seguida no Brasil – praticamente ao mesmo tempo que um grupo japonês divulgava seu estudo sobre identificação de vacas em sofrimento. “Passamos a ter uma ferramenta para efetivamente monitorar o bemestar animal. Em vez de apenas supor, agora podemos medir, como todo engenheiro deseja. Essa é a grande valia deste trabalho.”
A pesquisadora da Feagri acredita em uma boa aceitação do software pelo setor produtivo, principalmente se for barato e de fácil manuseio, como promete. “Aos sons podem ser associadas imagens por meio de uma câmera de vigilância, ao menos durante os períodos críticos da produção destes animais, que já conhecemos. O sistema ajudaria em termos de auditoria, sendo que o produtor poderia receber um selo atestando as condições de bem-estar da sua criação.”
Irenilza ressalta a importância de os produtores brasileiros, na condição de maiores exportadores de carne, passarem a priorizar a questão do bemestar animal, diante de um interesse mundial muito acima do esperado. “Até cinco anos atrás, esse assunto era pouco discutido nos Estados Unidos, grande consumidor e produtor de carne. Hoje, o McDonald’s e a maioria das cadeias de fast-food mantêm equipes especializadas no tema.”
Segundo a professora, essas equipes estão preparadas para atender à demanda de um público que, embora vá se alimentar da carne, condena o sofrimento do animal durante o processo. “Quem trabalha com animais de produção nunca pensa neles como semelhantes do animal que temos em casa. O setor é uma máquina de produzir alimento. No entanto, por que esses animais não se comunicariam? Estamos sempre aprendendo com a simplicidade do pessoal do campo.”
Se a relação tratador e animal for boa, a mortalidade da criação diminui
O desenvolvimento do software para identificar a vocalização de aves, suínos e bovinos não é uma pesquisa isolada do grupo coordenado pela professora Irenilza de Alencar Nass (foto) na Feagri. São vários segmentos, incluindo a legislação internacional e nacional sobre o bem-estar animal. “Já concluímos uma dissertação de mestrado, de autoria de uma advogada, comparando a situação em vários países produtores, como Brasil, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos e na União Europeia.”
O estudo, de acordo com a professora, mostra que os níveis de bemestar animal no Brasil estão bem abaixo dos níveis dos demais países, o que demonstra que a questão ainda não está preocupando os produtores nacionais. “O produtor que exporta cria os animais em boas condições, mas mais interessado na qualidade da carne. Ainda estamos longe de atender adequadamente às condições de bem-estar do animal, mas, se houver incentivo, será uma questão de tempo.”
Irenilza afirma que o objetivo do grupo é fechar o cerco em torno do tema para oferecer respostas e novas tecnologias ao setor produtivo, destacando que, para cumprir este propósito, todas as teses dos seus orientados são desenvolvidas no campo. “Não estudamos a vocalização dos animais por conta do aspecto lúdico, mas para que os resultados sejam utilizados pelos produtores. Com um software e mais US$ 3 pelo microfone, o criador pode gravar e interpretar as condições do animal e valorizar sua carne.”
Outra pesquisa do grupo, acrescenta a docente, avalia o papel do trabalhador da granja desde o incubatório. “No caso do frango, verificamos que a relação entre tratador e animal, quando é boa, melhora a condição de bem-estar e a ave responde melhor. Quando não há uma boa interação, a mortalidade na criação pode chegar a 3%. Também temos trabalhado nesta área de ergonomia.”
A inadequação da legislação brasileira à nossa realidade é outro problema apontado pela pesquisadora da Feagri. Ela afirma que há um “recorta e cola” de normas internacionais, impossíveis de serem aplicadas em um país continental. “Muitas normas que não fazem sentido nos são empurradas. Como, por exemplo, o limite de emissão de amônia pelas granjas de frangos de corte, quando nada emitimos. Nossos prédios são todos abertos e o pouco de amônia que sai das instalações é absorvido na circunvizinhança, não vai provocar chuva ácida em canto nenhum.”
PARA SABER MAIS
E-mail: irenilza@feagri.unicamp.br