06/05/2024 - 10:34
Antecipando a estreia de sua Sinfonia nº 9, em 7 de maio de 1824, Ludwig van Beethoven (1770-1827) tinha que se desdobrar em mil. A nova obra era esperada com suspense em Viena, copistas se dedicavam a todo vapor à produção das partes orquestrais manuscritas. O compositor não apenas supervisionava o trabalho deles, mas também se empenhava para contratar um teatro apropriado, músicos e cantores.
“O público costuma ver Beethoven como esse gênio solitário, criando obras grandiosas na mais absoluta solidão. Na verdade, ele trabalhava junto com uma grande equipe”, observa a musicóloga Beate Angelika Kraus, do Beethoven Archiv, a seção de pesquisa da casa de nascença do músico em Bonn.
Ao se ocupar da Nona sinfonia para a edição crítica das obras completas, ela se aprofundou nos processos de trabalho na “firma Beethoven”: “É preciso pensar em Beethoven também como um empresário que organizava sua vida profissional com uma rede de colaboradores.”
Havia outras pessoas no palco gerenciando o coro e a orquestra. Um maestro chefe conduzia todo o concerto. Beethoven ficava ao seu lado e marcava o ritmo. Além do primeiro violino, um pianista também assumia a responsabilidade. “Isso era comum na época. Quando um coral subia ao palco, o pianista podia dar assistência a partir do piano se necessário”, diz Kraus.
Memória do Mundo, “Ode à Liberdade”
O manuscrito autógrafo da Nona é um marco da história da música e, desde 2001, integra o programa Memória do Mundo da Unesco, como contribuição “para o diálogo cultural internacional”.
Ela é visionária em diversos aspectos: pela primeira vez, um compositor incluía solistas vocais e um coro numa sinfonia; e ela dura cerca de 70 minutos, o triplo das dimensões usuais na época, abrindo o caminho para obras titânicas como as de Gustav Mahler e Anton Bruckner, e mesmo as óperas de Richard Wagner.
Para o famoso coro final, denominado Ode à Alegria, Beethoven escolheu um poema do também filósofo e dramaturgo Friedrich Schiller (1759-1805), exaltando a paz e a harmonia entre os povos. A versão instrumental foi declarada hino do Conselho Europeu em 1972, e desde 1985 é o hino oficial da União Europeia.
Foi a Sinfonia nº 9, opus 125 que o maestro Leonard Bernstein apresentou no dia do Natal de 1989, na Konzerthaus, para marcar a queda do Muro de Berlim. Na ocasião, a palavra Freude (alegria) no quarto movimento foi substituída por Freiheit (liberdade).
Em 23 de fevereiro de 2022, o dia seguinte à ofensiva russa contra Kiev e Kharkiv que marcou o início da invasão da Ucrânia, a regente ucraniana Oksana Lyniv regeu a Nona. Para ela, o verso de Schiller “Todos os seres humanos se tornam irmãos” é especialmente tocante: “Todos no mundo devem desenvolver essa empatia, já na época ela contagiou o público, que até jogou seus chapéus para o ar.”
A Nona como work in progress
A última sinfonia concluída de Beethoven teve um longo período de gestação: os primeiros esboços datam de 1815. Apesar das dimensões dessa “música contemporânea” e do aparato envolvido, durante a vida de seu criador ela foi executada 12 vezes, em diferentes “versões autorizadas”.
Assim, o que se escutou em Viena, em maio de 1824 foi uma versão preliminar, diferente da enviada para o editor ou da partitura que o músico dedicaria dois anos mais tarde ao então rei da Prússia, Frederico Guilherme 3º. “A Nona não é, como se costuma pensar, uma obra estática”, diz Beate Kraus”, “mas, antes, um work in progress.”
Como a encomenda para a revolucionária composição partira da Philharmonic Society de Londres, a estreia deveria ter sido na Inglaterra. Contudo, numa carta ao compositor, 30 patronos das artes vienenses apelaram para que ele a apresentasse pela primeira vez em sua cidade.
“Conhecemos esse documento de fevereiro de 1824 há bastante tempo”, relata Kraus, “mas hoje o vemos com outros olhos: muitos desses signatários estavam em contato próximo com Beethoven”, portanto é possível que o próprio músico estivesse envolvido na iniciativa. Certo é que a carta lhe serviu de bem-vindo pretexto para que a estreia fosse em seu lar eleito, a capital austríaca.
Compondo o caos e o silêncio
Beethoven costumava apresentar ao público suas últimas criações em concertos denominados “academias”. Ao contrário dos hábitos atuais, contudo, “ninguém iria a um concerto que só durasse uma hora, ou que tivesse só a Nona sinfonia no programa”, comenta Beate Angelika Kraus, da Beethoven Haus.
Desse modo, os mais de 2 mil espectadores da academia de 7 de maio de 1824, no Wiener Hoftheater, junto ao Portão da Caríntia, escutaram, ainda, três partes da Missa solene, op. 123, e a abertura Die Weihe des Hauses (A consagração da casa), op. 124. Como era praxe, o coro se postava na frente da orquestra, e não no fundo do palco.
O movimento final da Nona abre com sons inexplicavelmente dissonantes da orquestra, abarcando desde o ribombo dos tímpanos até o silvo das flautas. Essa passagem se repete, intensificada, logo antes da primeira – e inédita – intervenção de um cantor. Tem-se especulado se não se trataria de uma tentativa do artista para representar de modo realista o caos que reinava em sua cabeça.
A deficiência auditiva se manifestara cedo no mestre: sons agudos, como os da flauta, há muito estavam fora do seu alcance. “A isso juntaram-se tinnitus [acufeno] e recruitment. Ou seja: apesar da surdez, sons altos lhe causavam sensação dolorosa”, relata Kraus.
Ainda assim, Beethoven tomou o pódio e regeu: “É bem possível que ele ainda conseguisse escutar as frequências graves, como dos tímpanos e contrabaixos.” O longo aplauso do público, porém, foi para o mestre um emocionante espetáculo silencioso.