Negar sexo para maridos, pelo incrível que pareça, é uma ideia relativamente nova. Nossas avós foram criadas sem saber que podiam dizer não para o homem com quem casaram. Mas ainda há que pense assim até hoje.”Se o seu marido quiser transar, você tem que dizer sim, senão, ele pode encontrar outra mulher e te deixar.” É claro que eu não acredito nessa frase. Esse é apenas um clichê que deveria ter ficado no passado. Na verdade, nunca nem deveria ter existido. Mas, infelizmente, ainda têm muitos homens (e mulheres também) que acreditam nisso.

Alguns chegam a achar que a lei que determina que uma mulher não pode ser forçada a ter relações sexuais ou outros contatos íntimos, só vale para os solteiros. Se alguém casa, “tudo está liberado”. Não é nada disso. Ainda bem.

A lei que criminaliza o estupro no Brasil vale também para casados. Isso significa que uma mulher não pode ser forçada ou coagida a ter relações sexuais ou intimidades sem querer. O mesmo vale para o caso de a pessoa estar vulnerável (dormindo ou bêbada, por exemplo). O nome desse crime é aquele horrendo: estupro.

Esse deveria ser um ponto óbvio, mas não é. E uma prova disso é que vez ou outra essa terrível (e infelizmente comum) modalidade de estupro volta a ser discutida e relativizada.

No momento, o tema é debatido após Ingrid Santa Rita, participante do Casamento às Cega, reality show que é sucesso na Netflix, insinuou que Leandro Marçal, com quem ela se casou no programa, no qual os participantes conhecem potenciais maridos e esposas, teria tido relações forçadas com ela. Ou seja, ela teria sido estuprada. Aos prantos, ela narrou o fato no último episódio do programa, aquele onde os participantes se encontram para conversar e lavar roupa suja, exibido na semana passada.

Em entrevista, Marçal negou tudo e culpou “a edição do programa”. Pela lei, repito, se ele forçou a parceira a ter intimidades sem ela querer, foi estupro, sim.

Ninguém é obrigada

E se um homem não forçou fisicamente, apenas insistiu muito, provocando, por exemplo, uma situação que poderia levar a uma briga? Nesse caso, é o cúmulo da falta de respeito. E nós, mulheres, casadas ou solteiras, precisamos dizer não.

Negar sexo para maridos, pelo incrível que pareça, é uma ideia relativamente nova. As nossas avós, por exemplo, foram criadas sem saber que podiam falar “não quero” para o homem com quem casaram. Também era muito comum que muitas mulheres casadas tivessem relações sem vontade, como se isso fosse uma obrigação. Para ser sincera, acredito que isso ainda aconteça muito. E não estou falando de estupro, mas do fato de transar sem vontade para que o cara “não encha o saco” e por aí vai. Quem nunca?

Até pouco tempo, a ideia era que mulheres deveriam estar sempre prontas para o que o homem quisesse. Quem tem mais de 40 anos lembra das revistas femininas que ensinavam a mulheres técnicas de “como agradar seu homem na cama, para não perdê-lo”, mesmo que ela tivesse que se sujeitar a fazer o que nem gostava. Sim, meninos, eu vi. A geração que hoje tem mais de 40 anos foi criada lendo esse tipo de absurdo.

“Deus mandou dar”

E ainda tem muita gente que pensa como se estivesse nos anos 1950, ou até em um tempo mais distante. Há algumas semanas, o pastor Adelino de Carvalho, da Igreja do Reino dos Céus, viralizou com uma pregação onde ele dizia absurdos como: “Se o seu marido é um homem bom para a senhora, a noite a senhora tem que dar para ele. E não fica com vergonha não, porque foi Deus que mandou você dar para o seu marido”. Ele continua dizendo que”se a mulher não der para o marido, ele vai procurar uma vagabunda na rua e a culpa será da mulher”.

Esse vídeo viralizou. Se tornou um escândalo. Mas quantos outros pastores e líderes religiosos no geral não falam isso para seus fiéis? Quantos “cursos de noivas” pelo Brasil afora ainda espalham esse tipo de absurdo?

Princípio do não significa não

E esse não é um problema só do Brasil. Na Alemanha, só em 1997 o estupro marital passou a ser considerado crime. Sim, um homem, teoricamente, poderia forçar a esposa a fazer sexo sem maiores problemas até o começo dos anos 1990.

Vinte anos depois, as coisas mudaram para melhor (ufa). Em 2016, o Bundestag (o Parlamento alemão) aprovou uma legislação mais rígida sobre crimes sexuais, que é bem diferente e mais dura que a brasileira.

Segundo a lei, o que se aplica agora é o princípio de “não significa não”. A nova legislação classifica como estupro todo ato sexual que tenha ocorrido sem o consentimento da vítima, independentemente de ter havido ou não emprego de violência. Ou seja, se você falar “não quero”, isso tem que ser o suficiente para o cara parar, e não importa se ele é seu marido ou namorado. Se não parar, ele pode ser punido como estuprador. Isso devia ser óbvio, não?

E o ideal seria não precisar leis para isso. É uma questão de respeito. Se uma mulher não quer, é não. E pronto.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.