Um dos líderes da Rede Nacional de Educação Cidadã, João Tavares foi nomeado “Young Global Changer” por uma ONG alemã. Em entrevista, ele fala sobre a importância do ensino da política em tempos de mídias sociais.Advogado e graduado em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), João Tavares, 27 anos, foi escolhido este ano como um “Young Global Changer” (YGC) pela Global Solutions Initiative, uma rede de think tanks baseada em Berlim que assessora e fornece propostas a organizações internacionais como o G20, G7 e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Entre quase 700 projetos de todos os continentes, a iniciativa brasileira Rede Nacional de Educação Cidadã (RedeNEC), cofundada por Tavares, ficou entre as cinco finalistas na categoria “Engajamento Cívico” da premiação, concedida anualmente pela Global Solutions Initiative para fortalecer jovens lideranças internacionais que se engajam por soluções em prol de um mundo melhor.

Em entrevista à DW, o ativista se mostra crítico em relação a um projeto em tramitação no Congresso que visa incluir educação política na grade obrigatória das escolas de educação básica. Ele destaca que, embora a proposta tenha teoricamente um caráter positivo, ela corre o risco de ser considerada inconstitucional. “A criação de disciplinas pelo Legislativo pode inaugurar um precedente nefasto que acabe por atrapalhar os trabalhos do Ministério da Educação”, afirma.

Ao comentar sobre a associação que alguns fazem entre educação política nas escolas a uma “ideologização” dos alunos, ele aponta ser importante haver uma ética suprapartidária dos docentes, para que os estudantes formem suas próprias opiniões, baseadas nos contextos apresentados. “A sala de aula não pode ser um palco para doutrinação. Essa é uma tarefa constitucional das fundações partidárias, que preparam seus afiliados para seguir sua cartilha ideológica”, alerta.

Em tempos de mídia social e fake news, ele afirma que a educação cidadã pode ser “uma vacina contra a desinformação” e também auxiliar para um melhor entendimento dos desafios apresentados pelas mudanças do clima, que ameaçam o planeta. “Eventos climáticos extremos como os do Rio Grande do Sul escancaram como é importante que as pessoas participem de forma qualificada da política”, ressalta.

DW: O projeto que visa incluir educação política e direitos da cidadania na grade curricular obrigatória da educação básica segue para votação no plenário do Senado. Qual a importância dessa proposta?

João Tavares: É simbólico e muito positivo que o Poder Legislativo se una para reafirmar a importância da educação política e para a cidadania porque isso nos ajuda a mostrar para a sociedade que existe um problema, uma falha na forma como nossa democracia foi pensada. Desde a redemocratização, dezenas de projetos de lei nesse sentido apareceram, e nunca uma proposta chegou tão longe dentro do Congresso. Os últimos anos de crise política e episódios como o 8 de Janeiro reforçaram a visão de que precisamos fortalecer a cultura democrática no Brasil, e isso contribuiu para que o projeto andasse até essa fase final de votação em plenário.

Do ponto de vista prático, os problemas são outros. O primeiro é a possível existência de uma inconstitucionalidade na própria proposta, que quer criar uma disciplina exclusiva para o tema enquanto a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação diz que a criação de uma disciplina é competência exclusiva do Conselho Nacional de Educação – e não do Congresso Nacional. É preciso entender como essa questão será arbitrada entre o Congresso, a Presidência da República e o Supremo Tribunal Federal porque, apesar da importância do tema, a criação de disciplinas pelo Legislativo pode inaugurar um precedente nefasto que acabe por atrapalhar os trabalhos do Ministério da Educação.

E aí a gente entra num segundo ponto: já existem no Brasil regulamentações legais o suficiente para balizar o ensino da política e da cidadania na sala de aula. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a BNCC [Base Nacional Comum Curricular] e a própria Constituição Federal, quando diz que é dever do Estado e da família preparar a pessoa para o exercício da cidadania, avalizam que esse conteúdo esteja presente nas escolas. A dificuldade, como é a dificuldade nas grandes políticas públicas nacionais, é aproximar o Brasil legal do Brasil real. Como vamos implementar esse conteúdo nas salas de aula? Que materiais didáticos vamos usar? Como apoiamos os professores, que já estão sobrecarregados, para dar essas aulas? E como estimulamos a adesão dos estados e municípios aos programas de educação política e cidadã, dado o caráter federativo da educação brasileira? São essas algumas das perguntas que vamos precisar responder para tirar esse sonho do papel.

Qual a importância da educação cidadã em tempos em que as mídias sociais e a disseminação de fake news têm um impacto social cada vez maior, principalmente entre o público jovem?

Hoje é praticamente impossível dissociar a educação cidadã da educação digital e midiática, principalmente porque o primeiro grande contato dos jovens brasileiros com temas políticos tem sido por meio de redes sociais ou de influenciadores que abordam os grandes assuntos de maneira indireta.

Nesse contexto, a educação cidadã pode ser uma vacina contra a desinformação por diversos fatores. O primeiro deles é que estimula o pensamento crítico e permite ao jovem compreender a motivação político-ideológica por detrás das mensagens às quais está exposto, podendo refletir com propriedade sobre os efeitos de compartilhar determinado conteúdo ou não.

Em segundo lugar, a educação cidadã qualifica o debate público, desmistificando soluções simplistas e retomando a confiança das pessoas nas instituições – o que diminui a margem para o compartilhamento de mensagens de teor reducionista ou conspiratório, por exemplo. Esse convite às pessoas para participarem do debate público também reduz a radicalização, grande motor das fake news, ao estimular que os cidadãos tomem sua parte da responsabilidade na construção de soluções para os nossos problemas sociais.

Por fim, a promoção da ideia de uma democracia pressupõe um papel social à mídia e ao jornalismo profissional como uma instituição legítima e de credibilidade, apesar de naturalmente carregar seus vieses. A consciência de que o jornalismo profissional pode servir como um filtro qualificador do debate público é fundamental e pode ser fortalecida quando se entende a distinção clara entre conteúdos informativos, de opinião e anúncios, por exemplo.

Há quem critique a proposta de educação cidadã em escolas, alegando que contribuiria para uma “ideologização” do ensino.

[O pedagogo] Rubem Alves dizia que educar não é ensinar as respostas, mas sim ensinar a pensar. Para que a educação cidadã aconteça, é preciso que seja praticado o valor inegociável da ética suprapartidária, ou seja, o esforço do professor de afastar sua opinião pessoal do centro do debate e deixar que os alunos formem suas próprias opiniões baseadas nos contextos que lhes são apresentados. Quando falamos de assuntos polêmicos, a regra é que o que é controverso na sociedade precisa ser trazido como controverso na sala de aula.

Esse princípio pedagógico de ensinar com responsabilidade precisa ser reforçado por uma formação de professores que os prepare para praticar, no limite do possível, o distanciamento ideológico em sala de aula. É essa técnica que permitirá que a educação cidadã seja praticada de forma segura e republicana, trabalhando os temas sensíveis forma equilibrada. A sala de aula não pode ser um palco para doutrinação – essa é uma tarefa constitucional das fundações partidárias, que preparam seus afiliados para seguir sua cartilha ideológica.

Qual o papel que a educação cidadã pode desempenhar em relação à conscientização sobre mudanças climáticas?

A educação cidadã tem como um dos objetivos restaurar um debate público baseado na razão e na ciência. Durante a pandemia, fiquei assustado com conhecidos que perderam parentes para a covid e que mesmo assim continuaram a praticar o mais puro negacionismo sanitário, relativizando a letalidade do vírus. Um parente morre, e ainda assim a pessoa não acredita no que todo mundo está dizendo. É desesperador. Agora, costumo perguntar aos ambientalistas como eles esperam que as pessoas acreditem em algo muito mais abstrato e intangível, que são as mudanças climáticas, sem termos uma base de educação cidadã e científica na sociedade. O negacionismo climático já existe e será muito mais desafiador do que o negacionismo que enfrentamos durante a pandemia.

Quando se fala em resiliência climática, os eventos climáticos extremos como os do Rio Grande do Sul escancaram como é importante que as pessoas participem de forma qualificada da política. A população de Porto Alegre estava sentada em uma bomba relógio – o potencial de transbordamento do rio Guaíba – e, mesmo assim, esse tema apareceu menos do que deveria nos debates eleitorais na capital gaúcha. Se houve negligência na manutenção dos sistemas de drenagem das cidades afetadas, por exemplo, há aí uma relação direta com as prioridades dos políticos eleitos no município. Acontecida a tragédia, vemos a imensa quantidade de fake news circulando, o que dificulta os trabalhos de reconstrução, aumenta o distanciamento dos cidadãos em relação ao Estado e terá consequências político-eleitorais por muitos anos – todos fenômenos que são amplificados ou reduzidos de acordo com a qualidade da cultura democrática local. Como costumamos dizer: tudo é político, então é importante prepararmos as pessoas para discutirem política.

O que temos puxado a orelha de parte dos ambientalistas é porque não é possível falar de educação ambiental sem consciência política. É impreciso sensibilizar os jovens sobre a importância de reciclar o lixo ou ensiná-los a plantar uma árvore e não ensinar como funciona o processo legislativo para que esse mesmo jovem acompanhe seu deputado e possa formar sua opinião sobre o comprometimento ambiental do mandato, por exemplo. É preciso que se tenha uma formação cidadã completa para que exista uma compreensão holística – e precisa – da crise climática e de suas soluções. Esse é um dos motivos pelo qual a emergência climática será o tema central do Encontro Nacional de Educação Cidadã deste ano, que vai acontecer em novembro em São Paulo.

Como a educação cidadã como a praticada em países como a Alemanha, onde você esteve este ano como um dos ativistas homenageados pela Global Solutions Initiative, pode ser considerada uma referência para o Brasil?

Em novembro estive na Espanha para o encontro europeu de educação cidadã e lá pude questionar os participantes sobre qual era o país do mundo com a melhor educação voltada para a democracia. As respostas foram unânimes: a Alemanha. Muito porque souberam encarar o problema de frente e entenderam que, ao fim da guerra e com a queda de um regime brutalmente autoritário, era preciso promover a desnazificação e ensinar a população o que é uma democracia. Foi por isso que, em 1952, criaram a Agência Federal para Educação Civil [Bundeszentrale für politische Bildung/BPB], uma agência bem financiada e independente, que foi responsável por travar esse debate com a sociedade alemã, financiando pesquisas, formando professores e apontando os rumos para o aprimoramento da educação cidadã no país. Quando se lê sobre essa história de mais de 70 anos, é perceptível que essa foi tarefa gradual e desafiadora – mas hoje é inquestionável que a Alemanha é uma democracia saudável e sólida, mesmo tendo o passado recente que conhecemos e seus efeitos prolongados.

No Brasil, as perguntas que surgem quando sentamos à mesa com o Ministério da Educação, por exemplo, são as mesmas que a sociedade alemã enfrentou nas décadas de 1960 e 1970 – entre elas, como formar professores para praticar a educação cidadã de forma segura, independente e suprapartidária. Por isso, descontadas as particularidades de cada país, o exercício de analisar políticas públicas em perspectiva comparada é positivo até porque a Alemanha é um país relativamente populoso – são 83 milhões de habitantes. Não à toa, a Rede Nacional de Educação Cidadã tem conduzido diálogos com o objetivo de fortalecer a cooperação acadêmica na área entre os dois países.

Em última instância, é interessante notar a postura da sociedade alemã com temas difíceis do seu passado, o que reflete também a maturidade da cultura democrática do país. Imagine só: enquanto lá os estudantes visitam campos de concentração para aprender sobre os horrores do nazifascismo, por aqui ainda discutimos se o Brasil é um país racista ou não. Quando teremos as crianças brasileiras visitando os museus da escravidão, que deveriam estar espalhados pelo país para mostrar os 350 anos de brutalidade que marcam a nossa história? Nós ergueremos um memorial em homenagem aos 700 mil mortos da covid-19, milhares dos quais deveriam estar vivos, ou varreremos mais esse capítulo traumático da nossa história para debaixo do tapete? Um dos papéis da educação cidadã é também reconhecer nossas feridas enquanto coletividade – literalmente colocar nossa sociedade no divã – para que possamos construir uma história diferente a partir daqui.