Kamala Harris, Francia Márquez, Benedita da Silva, Marielle Franco e outras incomodam muita gente. São mulheres negras que “não sabem seu devido lugar”. E ainda bem que não sabem.Na terceira semana de julho, uma virada (em parte esperada) mudou o cenário das eleições dos Estados Unidos. As questões de saúde mental do presidente Joe Biden acabaram se impondo – sobretudo entre os financiadores de sua campanha –, e ele desistiu de concorrer à reeleição. No momento seguinte de sua desistência, Biden já acenou o apoio a Kamala Harris, sua vice-presidente, apoio esse que foi endossado por grande parte dos democratas. Pela primeira vez em 248 anos de experiência republicanista, é a primeira vez que uma mulher negra vai concorrer à presidência do país.

Mas, nesse dia 25 de julho – Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha – mais do que mergulhar nas contradições e críticas (parte delas pertinentes) a Kamala Harris e suas posições políticas, me pego pensando como a candidatura e o exercício de mulheres negras na política formal é um fator que causa incômodo e medo.

Infelizmente, não precisamos ir muito longe para comprovar isso. Aqui no Brasil, nós ainda temos que lidar com o fato de que a vereadora de uma das maiores cidades do país, Marielle Franco, foi assassinada por motivações políticas, fato que não deixa dúvidas que a vereadora estava mexendo em um vespeiro que ordena boa parte do fazer política no Rio de Janeiro.

Frequentemente ficamos sabendo de ameaças de morte a parlamentares negras – uma prática que não se restringe às mulheres negras, mas que paira como um fantasma sob a vida dessas mulheres de maneira mais forte. Basta lembrar que a atual vice-presidente colombiana, Francia Márquez – primeira mulher negra a ocupar o cargo – já denunciou uma série de ameaças e planos de morte contra ela e seus familiares.

Embora essas ameaças nem sempre se cumpram, elas são um lembrete constante de que, no mundo em que vivemos, a política formal não é um espaço destinado às mulheres negras. Não sejamos ingênuos: o exercício do poder foi historicamente constituído para que mulheres negras estivessem sob controle, e não para que fossem agentes da administração e comando de governos, mesmo que republicanos.

Então, por princípio, mulheres negras no comando incomodam muita gente.

Benedita ou Chica: uma grande diferença

Em uma live recente, a deputada federal Carla Zambelli se referiu como “Chica da Silva” à também deputada Benedita da Silva, num exemplo evidente do racismo “corriqueiro” e estrutural do Brasil. O episódio ganhou repercussão, e uma onda de solidariedade foi feita em nome de Benedita. Zambelli disse que foi mal interpretada e que a mídia cobriu a questão de maneira parcial. Mas para quem sabe como funciona a gramática do racismo brasileiro, fica evidente que a comparação feita por Zambelli passa pelo fato de que, para ela, Chica e Benedita da Silva são mulheres negras que não sabem seu devido lugar.

E ainda bem que elas não sabem.

Chica da Silva foi uma mulher escravizada que viveu em Minas Gerais no século 18. Ao contrário do que acontecia com a imensa maioria das mulheres escravizadas daquele período, Chica da Silva conseguiu sua alforria e manteve uma longa relação consensual com um rico contratador de diamantes, João Fernandes de Oliveira. O fato de ter se tornando uma mulher negra e rica gerou muitos mitos em torno da sua figura, mitos esses que atravessaram o tempo e que forjaram uma imagem estereotipada dessa personagem, cuja trajetória de vida é muito interessante.

Mas essa trajetória não tem ligação alguma com a vida de Benedita da Silva, a não ser pelo fato de estarmos tratando de duas mulheres negras que “furaram a bolha” do seu tempo e se fizeram ouvir. Benedita da Silva é um quadro fundamental da história política brasileira das últimas décadas. Participou da Assembleia Constituinte de 1988, foi a primeira senadora negra do país, ministra, governadora do Rio de Janeiro e hoje, aos 82 anos, segue sendo um farol que lembra como mulheres negras, ao subirem no poder, revolvem as estruturas sociais. Não é por acaso que uma mulher que trabalhou como faxineira, para se formar como auxiliar de enfermagem, teve e tem atuação direta nos movimentos de favela e na extensão dos direitos trabalhistas às empregadas domésticas.

Por mais difícil que ainda seja a presença de mulheres negras na política formal, quando elas chegam nesses espaços de poder, as estruturas são abaladas. Isso porque essas mulheres trazem junto com elas suas experiências de vida, experiências essas que, na maioria das vezes, são tomadas apenas como massa de manobra em anos eleitorais, e não como pontos de partida de outras formas de fazer política.

Embora não haja uma forma única de ser mulher negra parlamentar (sim, temos parlamentares negras de esquerda e de direita), é sempre bom lembrar que o lugar da mulher negra é onde ela quiser. E se a democracia não nos resguarda esse direito, é porque ela está incompleta.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.