Se algo é certo sobre Richard Wagner (1813-1883), é que ele gostava de estar no controle. Afinal, esse compositor, dramaturgo e diretor teatral alemãocriou o conceito de gesamtkunstwerk – a obra de arte total, que sintetizaria música, texto, teatro, cenário e arquitetura. Em 1876, criou um festival dedicado exclusivamente a suas próprias óperas. E, no estilo dos influenciadores da era digital, cultivava cuidadosamente uma autoimagem quase mítica,

O Festival de Bayreuth reúne de julho e agosto, a cada ano, cerca de 60 mil fãs na cidade homônima, na região da Baviera, sudeste da Alemanha. Um evento com características de culto, em que as mesmas cerca de dez principais óperaswagnerianas são incessantemente revividas, como se fosse sempre a primeira vez, em montagens em parte inéditas.

Porém parte da trajetória do festival ocupa lugar central num capítulo obscuro da história alemã: Wagner era adorado pelo ditador nazista Adolf Hitler. Tampouco contribui positivamente para a reputação extramusical do artista alemão o fato de os mercenários russos do Grupo Wagner, atuantes na guerra da Ucrânia, entre outras, terem possivelmente adotado o seu nome.

Wagner: um cara nem tão legal assim

Wagner era uma figura profundamente ambivalente. Quando jovem participou da Revolução de Março, uma série de protestos que eclodiram de maneira coordenada na Europa em 1848-49, reivindicando maior liberdade política, democracia e abolição da pobreza. Mais tarde, contudo, ele não hesitaria em receber apoio financeiro de nobres e cidadãos ricos. Sem o generoso patrocínio do admirador Ludwig 2º, rei da Baviera, por exemplo, o sonho de um teatro próprio jamais teria se realizado.

Antissemita ferrenho – como, aliás, grande parte de seus contemporâneos europeus – em 1850 publicou o panfleto O judaísmo na música, no qual negava que os judeus tivessem capacidade de se expressar de forma criativa. No século seguinte, suas opiniões caíram nas mãos dos nazistas, servindo como mais um pretexto para o horror do Holocausto.

Acostumado a viver além de suas possibilidades, Wagner estava sempre com problemas financeiros, e chegou a fugir para o exterior várias vezes para escapar de seus credores. Em situações como essas, aceitava de bom grado a ajuda de colegas judeus. Um deles foi o compositor de ópera Giacomo Meyerbeer, que, famoso em Paris, o ajudou a se lançar nos palcos franceses. Isso não impediu Wagner de fazer observações depreciativas sobre ele em seu panfleto antissemita.

Tudo isso tornou o compositor persona non grata entre muitos de seus colegas. A pianista e compositora Clara Schumann criticava sua arrogância e sua risada choramingante. Para o escritor Thomas Mann, ele era o “gnomo fungador da Saxônia com talento bombástico e caráter desprezível”. O próprio diretor do Museu Richard Wagner de Bayreuth, Sven Friedrich, o descreve como “fisicamente pequeno e um egocêntrico ardiloso”.

Um ser humano do seu tempo

Sob o título Mensch Wagner (Ser humano Wagner), até 6 de outubro de 2024 uma nova exposição apresenta itens do artista, bem como testemunhos de seus familiares e conhecidos, no Museu Richard Wagner de Bayreuth.

A segunda esposa, Cosima Wagner, filha do compositor Franz Liszt, mantinha diários sobre a vida em comum, revelando as preferências do marido e também seus medos, que frequentemente apareciam em sonhos. Certa vez, ele sonhou que pedia desculpas ao tão odiado Meyerbeer, e que o público aplaudia sua expiação.

Os organizadores da exposição querem mostrar Wagner não como um visionário que criou a si mesmo, mas como um homem de seu tempo e um produto das circunstâncias biográficas. “É por isso que também incluímos objetos que deixam claro que Wagner tinha uma vida cotidiana normal. Porque o mito não admite o quotidiano”, explica Friedrich.

Esses objetos incluem as botas de caminhada de Wagner, sua carteira de bolso, a caderneta de anotações, poemas casuais e livros de receitas medicinais e culinárias. Documentos relativos às finanças de Wagner também são exibidos pela primeira vez.

Wahnfried, local de retiro

Wagner era muito sensível ao barulho. Por isso, buscava paz e tranquilidade nos Alpes e também na Vila Wahnfried, a residência rural em Bayreuth onde viveu com sua família a partir de 1874, a qual abriga hoje o Museu Richard Wagner.

O compositor amava a natureza e demonizava a urbanização e o progresso industrial do século 19. No entanto também buscava lucrar com avanços como as ferrovias, que usava intensamente para visitar possíveis doadores em todo o país.

Além disso, viajava pela Europa, aonde quer que pudesse encontrar um posto de trabalho. Em Riga, na Letônia, trabalhou como diretor musical do teatro alemão local. Foi lá que compôs sua primeira ópera, Rienzi, estreada em Dresden em 1842, e a que deveu seu sucesso inicial em Paris.

Na capital francesa, compôs, entre outras óperas, O Navio Fantasma, que integra o programa do Festival de Bayreuth de 2024, sob a regência da ucraniana Oksana Lyniv.

Depois de uma revolta em março de 1849, Wagner fugiu para Zurique, onde começou a trabalhar na épica tetralogia O Anel do Nibelungo. Paralelamente, compôs Tristão e Isolda, sobre dois amantes separados pelo destino e a banalidade do mundo.

O ciclo O Anel do Nibelungo está sendo apresentado em 2024 sob a direção cênica do austríaco Valentin Schwarz. Tristão e Isolda estreou em 25 de julho numa nova montagem do diretor islandês Thorleifur Ôrn Arnarsson.

Wagner mandou construir a própria sepultura no jardim da Vila Wahnfried. Após sua morte em Veneza, em 1886 a viúva Cosima assumiu a direção do festival, sendo sucedida pelo filho Siegfried (1908-1930) e a nora Winifred (1930-1944) .

Após a interrupção pela Segunda Guerra Mundial e a necessária desnazificação do evento, a partir de 1950 os netos Wieland e Wolfgang dividiram em conjunto as funções artísticas e administrativas. Em seguida a um período turbulento de disputas internas, desde 2008 a bisneta Katharina Wagner está à frente do Festival de Bayreuth, que em 2024 vai de 24 de julho a 27 de agosto.