03/08/2024 - 15:59
Celeuma criada em torno da boxeadora argelina Imane Khelif nos Jogos Olímpicos de Paris reacendeu debate sobre o que define uma mulher. Spoiler: quem argumenta com base na “biologia” está quase sempre errado.Nosso gênero é idêntico ao nosso sexo; está inscrito em nossos genes, pode ser claramente determinado e não muda ao longo da vida. A mulher está em um polo totalmente oposto ao do homem – ou se é uma princesa ou um cavaleiro, e não há absolutamente nada entre esses dois seres. Não importa o que você diga: seu sexo é aquele com o qual você nasceu. Ponto final.Quem pensa assim – muitos, inclusive, envolvidos na discussão sobre se a boxeadora argelina Imane Khelif deveria poder competir nos Jogos Olímpicos de Paris – geralmente se baseia em um argumento: “É questão de ciência” – biologia, para ser mais preciso.
Só que o consenso científico mudou: sexo é um espectro. Se você quiser se ater ao argumento de que mulheres e homens estão em polos opostos, precisa saber que há bastante variação entre um polo e outro.
Genética é claramente ambígua
Cromossomos XX = mulher; cromossomos XY = homem. É assim que aprendemos, na escola, que o sexo é definido.
Em pessoas com os cromossomos XX, a vagina, o útero e os ovários normalmente são formados no próprio útero. No caso dos XY, fetos geralmente desenvolvem pênis e testículo.
Há pessoas cujos aspectos físicos são femininos, mas que carregam em suas células os cromossomos XY “masculinos”, e vice-versa.
Um gene localizado no braço mais curto do cromossomo Y, chamado SRY, determina (junto com outros fatores) se testículos serão formados em um embrião. Se, por exemplo, esse gene não estiver pronto por causa de uma mutação, ou se estiver dormente, por assim dizer, o órgão não se desenvolverá – e isso apesar da presença dos cromossomos XY.
Por outro lado, testículos podem se desenvolver em pessoas com cromossomos XX caso o gene seja passado ao cromossomo X (possivelmente durante o processo de divisão das células).
Sendo assim, quão delicado é determinar o sexo de uma criança logo após o nascimento, baseando-se somente em características sexuais externas visíveis?
Nada é tão imutável quanto parece
Há muitas variações naturais nos cromossomos sexuais. Isso também pode afetar as características sexuais visíveis, como os genitais – aqui também existem várias gradações entre o pênis totalmente formado e a parte externa visível do clitóris.
Indivíduos que não se encaixam claramente em um dos sexos binários referem-se a si mesmos como intersexuais – um grupo do qual 1,7% da população mundial faz parte, segundo estimativas das Nações Unidas. Esse número é comparável ao de pessoas ruivas no mundo.
Desde 2018, recém-nascidos intersexuais podem ser registrados sob o gênero “diverso” na Alemanha. Outros países, como Austrália, Bangladesh e Índia, também reconhecem um terceiro sexo. No Brasil, há casos isolados de pessoas adultas que conseguiram se registrar como não-binários.
O sexo também pode mudar ao longo da vida ― ou mais precisamente, a identidade gonadal sexual pode mudar. Pesquisadores chineses descobriram isso em um estudo com camundongos.
Os genes responsáveis por essa mudança são DMRT1 e FOXL2, que normalmente equilibram o desenvolvimento de ovários e testículos em uma espécie de relação yin-yang. A mudança desses genes pode levar à mudança do fenótipo sexual gonadal mesmo em animais adultos.
O papel dos hormônios
Testosterona = hormônio masculino. Estrógenos e progesterona = hormônios femininos. É isso que ensinam na escola – mas, novamente, as coisas não são tão simples assim.
Todos, independente de gênero, têm esses hormônios sexuais em seus corpos. Os níveis médios de progesterona e estradiol (o estrogênio natural mais potente) mal diferem entre homens e mulheres.
Se alguém procura binaridade nos níveis hormonais, deveria distinguir entre “grávida” e “não grávida”, de acordo com um estudo americano sobre características sexuais reconhecidas, intitulado The future of sex and gender in psychology: Five challenges to the gender binary (O futuro do sexo e do gênero na psicologia: Cinco desafios à binaridade de gênero). Os autores demonstram que apenas as mulheres grávidas apresentam níveis de estradiol e progesterona extraordinariamente diferentes de outras pessoas.
Crianças não têm diferença significativa nos hormônios sexuais. Só na puberdade é que aumentam os níveis de testosterona, principalmente, de modo que os homens, em média, têm mais testosterona do que as mulheres.
No entanto, descobertas recentes da ciência apontam que essa diferença também foi superestimada por muito tempo devido a uma falha metodológica, já que a testosterona era estudada estereotipicamente apenas em homens e os estrogênios, apenas em mulheres.
Hoje há pesquisas específicas sendo conduzidas sobre as semelhanças hormonais entre os sexos. Também foi descoberto que os níveis hormonais dependem notavelmente de fatores externos e não são, como se supunha anteriormente, puramente geneticamente predeterminados.
Futuros pais, por exemplo, têm menos testosterona durante a gravidez da parceira. Por outro lado, a produção dos supostos hormônios femininos estradiol e progesterona é maior quando os indivíduos competem por dominância – um comportamento tradicionalmente associado à masculinidade.
Cérebro tem gênero?
Cérebros de homens e mulheres têm algumas diferenças. Os deles são maiores, em média. Regiões cerebrais também diferem em tamanho médio, densidade de conexões e tipo e número de receptores.
Entretanto, mais uma vez, os pesquisadores não conseguem identificar com precisão o cérebro masculino ou feminino. Cada cérebro é bastante único e se assemelha mais a um mosaico com diferentes partes “masculinas” e “femininas”.
Pelo menos é isso que afirmam pesquisadores da Universidade de Tel Aviv no estudo Sex beyond the genitalia: The human brain mosaic (“Sexo além das genitálias: O mosaico do cérebro humano”). A pesquisa, realizada com 1.400 cérebros, aponta que 25% a 50% deles exibiam essa mistura de partes “masculinas” e “femininas”.
Isso também se aplica aos cérebros das pessoas trans, que estão sendo estudados de maneira mais direcionada. Diferentes regiões cerebrais dessas pessoas estão às vezes mais próximas de seu gênero percebido e às vezes do gênero que lhes foi atribuído ao nascerem.
Fato é: não há uma binaridade pura das características sexuais. Quaisquer argumentos supostamente “biológicos” nessa direção não estão alinhados com o que a ciência sabe hoje.
Sexo e gênero são questões tão complexas e versáteis quanto os humanos (e camundongos e outros animais).
Este artigo foi originalmente publicado em alemão em 31 de março de 2021 e atualizado em 3 de agosto de 2024.