04/08/2024 - 5:36
Considerada heroína tanto no Brasil como na Itália, revolucionária morreu há 175 anos. Seu papel de destaque foi resgatado após a República.Em 4 de agosto de 1849, grávida do quinto filho, a revolucionária brasileira Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi, morreu por complicações decorrentes de febre tifoide quando, ao lado do marido Giuseppe Garibaldi (1807-1882) empreendia uma fuga pela bota italiana, perseguidos por 40 mil soldados franceses, espanhóis e napolitanos e espreitados por 15 mil homens do exército austríaco.
Àquela altura, prestes a completar 28 anos, a catarinense já havia participado de lutas no Brasil, no Uruguai e na Itália. Primeiro, foi protagonista da chamada Revolução Farroupilha, conflito entre gaúchos o o governo imperial que resultou na criação temporária da República Rio-Grandense.
Em 1842, quando estava exilada em Montevidéu e seu marido batalhou na guerra entre o Uruguai e a Argentina, ela participou dos confrontos como enfermeira.
Cinco anos mais tarde, foi para a península itálica, terra de seu marido. Ali atuaram nos confrontos do chamado Risorgimento, o movimento de unificação dos vários pequenos Estados italianos em uma só pátria, a Itália.
Por isso, tanto Anita quanto Giuseppe são reconhecidos como “heróis dos dois mundos”. Ela está sepultada em um monumento dedicado à sua trajetória no Janículo, colina em Roma.
Símbolo do protagonismo feminino
Para especialistas, seu legado histórico é inquestionável — e se torna ainda mais importante dado o contexto patriarcal em que poucas mulheres se destacavam.
“Ela foi uma mulher que atuou ativamente na reivindicação de autonomia territorial tanto no Brasil quanto na Itália, levando em conta os contextos próprios de cada região. Podemos dizer, então, que a história destes territórios se liga diretamente ao exercício de Anita nos embates que ocorreram em cada um desses lugares”, comenta a historiadora Giovanna Trevelin, pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A historiadora destaca que a importância de Anita “está no fato de representar a possibilidade de mulheres ocuparem espaços ativos na história e construírem não só seus próprios caminhos, mas também protagonizar grandes momentos da história de um país”.
“É certo que sua relevância nos contextos da Revolução Farroupilha e da Unificação da Itália foi decisiva não só como uma força única diretamente nos embates, sendo essencial tanto no estímulo aos enfrentamentos quanto neles próprios, mas ela se faz ainda mais importante para a história das mulheres”, pontua Trevelin.
“Poder estudar nossa história e encontrar, entre inúmeros personagens masculinos, uma mulher tão confiante, destemida e corajosa, é basicamente uma revolução dentro do que normalmente entende-se como história, e isso tem um papel muito único de expansão de representatividade.”
O historiador Vitor Soares, que mantém o podcast História em Meia Hora, avalia que a importância de Anita “vai muito além da sua atuação na Revolução Farroupilha ou na Unificação da Itália”, pois “ela é um ícone da emancipação feminina no Brasil, por ter subvertido os papéis tradicionais de gênero de sua época”.
Terceira dos 10 filhos de um tropeiro com uma descendente de açorianos da região de Lages, Anita teve uma infância pobre, morava em casa de pau-a-pique em Morrinhos, onde hoje é o bairro Anita Garibaldi, no município de Tubarão. Seu pai morreu quando ela era adolescente e sua mãe passou a trabalhar como empregada doméstica.
Os ideais republicanos pelos quais ela lutou em vida teriam sido aprendidos por um tio paterno, que costumava palestrar em sua casa sobre a necessidade de uma mudança para esse regime. Aos 14 anos, Anita casou-se com um sapateiro — mas o enlace durou pouco.
Quatro anos mais tarde, ela conheceu Giuseppe, quando ele comanda tropas farroupilhas em Santa Catarina. Foi paixão à primeira vista e, a partir dali, ela passaria a acompanhar o revolucionário italiano.
Resgate republicano
Em uma época de mulheres apagadas pela história, ela não só se tornou guerreira como acabou sendo valorizada pelo marido — e os pesquisadores atestam que isso foi fundamental para que seu nome não acabasse esquecido ou subvalorizado.
“Em um período em que as mulheres eram frequentemente relegadas a papéis subalternos, Anita se destacou como uma combatente e líder, mostrando que a participação feminina é crucial em todos os aspectos da vida social e política”, afirma Soares. “Sua trajetória inspira inúmeras mulheres a se engajarem na luta por direitos e justiça social.”
“Segundo relatos presentes principalmente em diários da época, nota-se que ela foi reconhecida em seu tempo por sua coragem e bravura diante dos embates que enfrentava”, diz Trevelin, lembrando que ela era vista tanto por companheiros como por adversários como “uma mulher muito forte e destemida”.
Mas a sedimentação histórica do reconhecimento de Anita não foi automático. “Ela viveu no século 19, período que conservava um imaginário muito patriarcal […]. Era extremamente estranho pensar nas mulheres ocupando um lugar ativo em guerras e revoluções. […] Não quer dizer que por não ser socialmente aceito, mulheres nunca tomavam frente nos embates”, diz a historiadora.
Isso fez, segundo explica Trevelin, que Giuseppe se destacasse como herói “em um primeiro momento”. O resgate do papel de Anita aconteceria anos mais tarde, após a Proclamação da República, “na ânsia pela construção de uma identidade nacional, e brasileira, no início do século 20”, explica a historiadora.
E, para isso, houve uma contribuição muito grande do próprio Giuseppe. Ele mantinha um diário de memórias e, no final dos anos 1860, deu longos depoimentos ao escritor Alexandre Dumas (1802-1870), que escreveu Memórias de Garibaldi.
Na verdade, Giuseppe rascunhou o texto em 1849, quando estava exilado em Tanger, no Marrocos. Confiou o material ao escritor americano Theodore Dwight, que primeiro publicou o relato em inglês, nos Estados Unidos. Mais tarde, Giuseppe pediu que seu também amigo Dumas fizesse a nova versão, enriquecendo-a com mais informações.
“Anita pouco foi lembrada no seu tempo. Ninguém ousaria apresentá-la com matiz de heroína indômita em dois mundos. Isso ocorreu a partir das Memórias de Garibaldi, delineadas após a morte de Anita, certamente não isentas de subjetivismo do autor […]”, escreveu a historiadora Hilda Agnes Hübner Flores na obra Anita Garibaldi: A Criação do Mito, publicada em 2007.
Uma terceira versão dessas memórias acabaria sendo publicada pela alemã Elpis Melena (1818-1899), que também se tornaria próxima a Giuseppe Garibaldi.
Uma história sob o ponto de vista de Giuseppe
Assim, a história de Anita acabou documentada a partir do ponto de vista de Giuseppe. “Em seus escritos, Giuseppe não economizou adjetivos a respeito dela. Disse que desde o primeiro momento de embate ela não se intimidou, colocando-se à frente das lutas, incentivando seus colegas, liderando. Caracterizou-a como uma mulher-soldado”, afirma Trevelin.
Para a historiadora, nos diários de Giuseppe, construiu-se Anita “como heroína já nas primeiras linhas”. “E isso embasou muito do que foi escrito sobre ela depois, seja no âmbito da história ou da literatura”, explica.
“Sendo assim, em um primeiro momento, seu protagonismo foi silenciado pelo contexto em que vivia. Porém, reafirmado anos depois nas palavras de seu já renomado companheiro. E, posteriormente, nutrido pela pesquisa história a partir dessa primeira fonte”, contextualiza.
“Se na esfera masculina o alferes Tiradentes, traidor do império, passou a ser visto como exemplo de patriotismo para as novas gerações, Anita Garibaldi, a ‘heroína dos dois mundos’, passou a ser apresentada como modelo feminino de virtude cívica”, atesta Flores.
Ela recorda que “o fascismo italiano veiculou o nome Anita a interesses patrióticos”, entre os anos 1930 e 1940, “o integralismo no Brasil deu seu nome a vários núcleos políticos e o líder comunista Luís Carlos Prestes [(1898-1990)] batizou a filha com o nome de Anita”.
“Em sua terra natal, Santa Catarina, é nome de dois municípios: Anita Garibaldi e Anitápolis”, destaca a historiadora. No Brasil, em 2012, Anita Garibaldi teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.