Manifestantes violentos têm promovido desordem no país após esfaqueamento de crianças alimentar ressentimentos anti-imigração e anti-islã. Como as coisas chegaram a esse ponto?Partes do Reino Unido mergulharam no caos desde que um ataque a facadas na cidade de Southport, na Inglaterra, matou três crianças e feriu outras dez pessoas – oito delas também crianças.

O suspeito é Axel Rudakubana, jovem de 17 anos nascido em Cardiff, no País de Gales, e filho de imigrantes vindos de Ruanda.

Os protestos que se seguiram ao crime viraram um confronto sectário: de um lado, ultranacionalistas e locais, principalmente pessoas brancas; do outro, muçulmanos e/ou imigrantes.

Houve tentativa de incêndio contra hotéis que abrigavam requerentes de asilo, ataques a prédios públicos e delegacias de polícias, a comércios, veículos e mesquitas, além de agressão física a pessoas. Em vídeos nas redes sociais é possível ver também homens mascarados de aparência asiática participando do tumulto. Crianças foram levadas por pais para participar da desordem, segundo investigadores britânicos e vídeos que circulam nas redes sociais.

Primeiras prisões

Nesta quarta-feira (07/08), oito dias após os primeiros protestos violentos, a Justiça britânica emitiu as primeiras condenações contra participantes da arruaça: três homens de 58, 41 e 29 anos, com penas de prisão de três anos, um ano e oito meses e dois anos e meio, respectivamente.

Segundo o promotor Jonathan Egan, a punição do trio é “apenas a ponta do iceberg e o início do que será um processo muito doloroso para muitos dos que tolamente escolheram se envolver em distúrbios violentos”.

“Esta é a ação rápida que estamos tomando. Se provocarem desordem violenta em nossas ruas ou online, vão encarar a força total da lei”, advertiu o recém-empossado premiê britânico, o trabalhista Keir Starmer, ele próprio ex-chefe do Ministério Público.

A violência foi planejada ou espontânea? E como um crime perpetrado por um jovem filho de pais ruandenses, de fé cristã, deu origem aos tumultos que visaram principalmente muçulmanos?

Falta de informação sobre identidade do suspeito alimentou especulações na internet

Como o suspeito do ataque a faca é menor de idade, a polícia se ateve às leis que proíbem os agentes de revelar sua identidade.

Para Rosa Freedman, professora na Universidade de Reading, isso deu à ultradireita a chance de espalhar suas próprias teorias e atribuir o crime ao seu inimigo favorito: os imigrantes muçulmanos.

Freedman diz que isso por si só não é a raiz dos protestos violentos, mas a fagulha do medo e ódio “incitados no Reino Unido antes do Brexit pelo governo conservador [que antecedeu o novo premiê trabalhista Keir Starmer], por parte da imprensa e por grupos da ultradireita”.

A anonimidade do suspeito acabou sendo derrubada por decisão judicial, justamente para pôr fim às especulações. Mas no momento em que a decisão veio, a campanha da ultradireita já andava de vento em popa.

Organização de caridade que atua no combate ao racismo, a Hope not Hate disse em comunicado ver a ultradireita agindo com base em uma agenda de rejeição aos imigrantes, aos muçulmanos e ao multiculturalismo, culminando na “pior onda de violência da ultradireita no Reino Unido desde o pós-guerra”.

A nova ultradireita britânica

A nova ultradireita no Reino Unido é uma mistura de pequenos grupos, frequentemente formados por atores individuais que se destacam nas redes sociais. Eles têm uma influência desproporcional devido à sua capacidade de explorar insatisfações reais na internet, mas usam esse alcance principalmente para fomentar intolerância contra imigrantes e muçulmanos.

Um ator central no ecossistema da ultradireita britânica é Stephen Christopher Yaxley-Lennon, que se apresenta como Tommy Robinson.

Ele é um ex-membro do Partido Nacional Britânico (BNP), de ideologia fascista, e co-fundador da English Defence League (EDL), um grupo islamofóbico e anti-imigração cujos apoiadores foram associados no passado aos hooligans – torcedores de futebol adeptos da violência gratuita.

O BNP não tem parlamentares eleitos, e da EDL não se ouvia falar há muito tempo – até eles protagonizarem um confronto com policiais em frente a uma mesquita em Southport no início da semana passada, segundo a polícia de Merseyside. O noticiário britânico informa que o governo cogita banir o grupo por extremismo.

A EDL foi criada em Londres em 2009, e muitos de seus simpatizantes eram torcedores de futebol – ou hooligans, termo que designa adeptos da violência gratuita – que acreditavam que os muçulmanos nunca poderiam ser verdadeiramente ingleses.

Yaxley-Lennon é uma figura influente entre os apoiadores da EDL. No X, onde é seguido por 900 mil usuários, ele propaga um discurso anti-imigração, anti-muçulmanos e anti-polícia.

Em um post na rede social em 2 de agosto, ele pareceu comemorar o ataque a uma delegacia de polícia: “Você deveria ter ouvido”, escreveu, dirigindo-se ao primeiro-ministro Keir Starmer.

Outro ícone da ultradireita, o influenciador britânico-americano Andrew Tate, que atualmente aguarda julgamento na Romênia por suspeita de estupro e tráfico, foi um dos primeiros a propagar o boato que levou à onda de violência recente no Reino Unido, sugerindo que o suspeito de Southport havia chegado ao país “em um barco há um mês”.

No X, Tate compartilhou uma imagem de um homem negro em um bote de borracha segurando uma faca em uma mão e libras esterlinas na outra. A legenda dizia: “Típico homem de Cardiff.”

Tate acusou a polícia britânica de estar ao lado de imigrantes e muçulmanos – embora ele próprio tenha raízes afroamericanas por parte de pai e tenha se declarado convertido ao islamismo.

Ultradireita semeou desconfiança para colher ódio

Semear desconfiança contra a polícia e manchar sua credibilidade é outra tática amplamente adotada pela ultradireita no Reino Unido. Especialistas explicam que isso faz o povo se voltar contra os agentes da lei, encorajando a violência.

Matthew Hankinson, condenado por participar do grupo neonazista Ação Nacional – banido pelo governo britânico em 2016 –, participou da arruaça em Southport e teria defendido o assassinato de “policiais corruptos”. Segundo a BBC, ele acusou a polícia de oprimir pessoas que apenas protestavam contra o assassinato de “crianças brancas”.

Nigel Farage, líder do partido político de ultradireita Reform Party, também lançou dúvidas sobre as informações divulgadas pela polícia a respeito do esfaqueamento em Southport ao sugerir que a “verdade” poderia estar “sendo escondida de nós”.

Paul Golding, co-líder de outro partido político fascista de ultradireita chamado Britain First, também questionou a imparcialidade da polícia em posts nas redes sociais.

Para especialistas, acusações desse tipo contra a polícia muitas vezes são associadas a conteúdos anti-muçulmanos para criar deliberadamente uma ligação falsa.

A ultradireita é grata a Elon Musk

Elon Musk, o dono do X, emergiu como o maior apoiador da ultradireita no Reino Unido. No ano passado, Yaxley-Lennon agradeceu a Musk por reabilitar sua conta no X após ele ter sido banido por propagar discurso de ódio.

Ao comentar os protestos, Musk afirmou que uma “guerra civil é inevitável”.

Quando Starmer foi ao X para apaziguar os cidadãos, dizendo que ataques a mesquitas ou a comunidades muçulmanas não serão tolerados, Musk reagiu insinuando que o premiê não estava interessado na segurança de todos.

O político Paul Golding, do partido de ultradireita Britain Frist, aproveitou a deixa de Musk e comentou, usando um emoji de aplauso, que o bilionário estava “expondo Keir Starmer”.

O papel deletério que falsas informações e especulações em redes sociais têm na onda de violência foi destacado em um comunicado do Conselho Nacional de Chefes de Política. “A desinformação é um grande motor dessa violência horrível, e sabemos que muitos dos que participam desses tais protestos estão fazendo isso em resposta direta ao que leram online”, consta do texto, que reconhece ainda o papel dos influencers nesse fenômeno. “Por favor, preste muita atenção ao que lê, compartilha e acredita.”

O Reino Unido aprovou uma lei em outubro do ano passado para regular plataformas, e que prevê multa de até 10% do faturamento global em caso de descumprimento de regras como a não moderação de conteúdo que incite à violência ou ao terrorismo. A medida, porém, ainda carece de regulamentação.

Na terça, o ministro britânico de Tecnologia, Peter Kyle, disse ter enfatizado a responsabilidade das plataformas em prevenir a difusão de conteúdo danoso em reunião com executivos de TikTok, Meta, Google e X. Ainda assim, veículos jornalísticos continuavam a encontrar posts populares no X encorajando a violência e o racismo.

Com informações de Anchal Vohra.

ra (DW, AFP, Reuters)