Dominada pela especulação do mercado financeiro e afetada pelo turismo, capital alemã vive forte crise imobiliária com aluguéis elevados e escassez de moradia.Cássia Gonçalves morava em Berlim desde 2017 sem ter tido, até então, grandes problemas para encontrar moradia. Contando com a ajuda de contatos, a estudante de mestrado já tinha morado em diferentes locais temporários. Desde 2022, ela estava em um apartamento mais estável – até ser despejada no início deste ano.

Através de amigos, Cássia tinha conhecido uma pessoa que parecia ser confiável. Na época, o homem com quem ela dividida o apartamento não quis fazer um contrato de aluguel, e Cássia não viu problema. Porém, cerca de um ano depois, quando ela precisou de um comprovante de moradia para acessar um benefício estudantil, ele a despejou do imóvel.

A justificativa: o alemão, que sublocou um quarto no apartamento para Cássia, era a única pessoa que podia morar no local. Posteriormente, Cássia descobriu que se tratava de uma moradia social, com um aluguel mais barato e destinada especificamente para cidadãos de baixa renda. Ou seja, o apartamento estava sendo sublocado de maneira ilegal, a um “preço exorbitante”, segundo a estudante.

Sem casa fixa, Cássia está vivendo com amigos desde que foi despejada em março. Por causa dos aluguéis elevados, ela enfrenta dificuldades para encontrar um novo endereço e diz que conhece muitas pessoas na mesma situação.

Outra brasileira que passa por uma situação semelhante é a enfermeira Lorena Freitas, que chegou a Berlim em 2023 com um contrato de emprego. O hospital no qual ela trabalha também oferecia moradia por um período inicial, em parceria com uma imobiliária, mas sem possibilidade de renovação por mais tempo. Tendo isso em vista, Lorena já começou a procurar um apartamento próprio para alugar.

“Estou nessa busca desde o ano passado, mas é desestimulante. É mais fácil conseguir emprego do que um lugar para morar. Eu nunca visitei um apartamento. Já enviei muitas candidaturas para anúncios em sites, mas nunca me responderam”, afirma Lorena.

A enfermeira chegou a assinar um plano num popular site imobiliário para receber primeiro os anúncios de imóveis e ter prioridade nas candidaturas, mas nem isso ajudou. Ela acredita que a única resposta que recebeu foi, na verdade, uma tentativa de golpe, porque o suposto proprietário pediu para ela depositar um valor de caução antes de visitar o local.

Preços altos e concorrência acirrada

Nessas plataformas de anúncios de imóveis, uma enfermeira amiga de Lorena ouviu de um potencial locador que seu salário era insuficiente. Foi quando elas descobriram que, geralmente, os proprietários preferem inquilinos que tenham, no mínimo, um salário líquido mensal equivalente a três vezes o valor do aluguel do imóvel.

Lorena também já ouviu falar que os proprietários dão preferência a alemães e, depois, a cidadãos europeus. A dificuldade é tanta que existem até agências que vendem como serviço encontrar apartamentos para alugar.

A competição acirrada por um endereço também foi sentida por Vitor Pacobahyba: “Tem muita gente procurando e os preços estão muito altos”, conta. O estudante de graduação estava buscando um quarto em uma república. “Eles recebem 100, 200 mensagens e não vão ler todas. E eles agendam entrevista, como se fosse entrevista de emprego. Mesmo tendo dinheiro para pagar, é difícil conseguir alugar.”

Em sua busca, Vitor chegou a visitar um quarto no porão de uma casa, com apenas uma janelinha no alto: “Era horrível, muito escuro. Tinha cheiro de mofo e umidade. Você via o chão do jardim, não tinha ventilação”. O local era afastado do centro de Berlim e custava 500 euros (cerca de R$ 3,1 mil) por mês.

Depois de sofrer preconceito por ser brasileiro e gay, ficar bastante ansioso e passar dias na frente do computador buscando anúncios, Vitor finalmente encontrou um quarto satisfatório: “Já assinei o contrato e já paguei a caução”, diz. “Eu sei que nada vai dar errado, mas ainda estou sem acreditar.”

Antes, no desespero, Vitor tinha chegado a cogitar deixar Berlim: “Como você vai morar numa cidade que você não consegue um lugar para morar?”.

A crise imobiliária em Berlim

A Alemanha atravessa a maior crise imobiliária dos últimos 30 anos, de acordo com o estudo Construção e Moradia, de 2024, do Instituto Pestel. E Berlim, por sua vez, tem ainda suas particularidades. A maior parte do capital europeu de investidores do mercado financeiro foi para a Alemanha e, em especial, para Berlim, aponta o projeto A quem pertence nossa cidade?, da Fundação Rosa Luxemburgo.

Nesse cenário, somente 15% dos moradores da capital alemã são proprietários de suas casas – uma porcentagem baixa em comparação com outras cidades europeias. Em Paris, por exemplo, são 38%; em Londres, 50%; e em Madri, 75%.

Os dados do censo alemão de 2022 mostram que as empresas imobiliárias detêm 19% dos apartamentos de Berlim. No caso da Deutsche Wohnen, são mais de 114 mil unidades; no caso da Vonovia, mais de 43 mil. Já os investidores privados formam 4%, enquanto as pessoas físicas são donas de 26%.

“Quase metade das casas em Berlim pertence a alguns bilionários e às suas empresas cotadas na bolsa. E isso é único em comparação com outros países, único também em comparação com outras cidades alemãs.”, explica Christoph Trautvetter, um dos autores do estudo A quem pertence a cidade?, publicado em 2020.

Nos últimos dois anos, os aluguéis em Berlim aumentaram consideravelmente. De acordo com a organização de pesquisa de mercado imobiliário Empirica-Regio, o aluguel médio na cidade ficou estável durante a pandemia de covid-19 — custando em torno de 10 euros (R$ 54) por metro quadrado —, mas subiu para mais de 14 euros (R$ 76) no último trimestre de 2023.

Reflexos do passado

No passado, Berlim já foi uma das capitais mais baratas da Europa para alugar imóveis, especialmente devido à sua história singular. Durante os anos em que esteve dividida, entre as décadas de 1950 e 1980, o regime comunista construiu um grande estoque de moradia e viu o sistema capitalista fazer o mesmo em uma espécie de competição.

Quando o muro caiu em 1989, a cidade começou a atrair pessoas de diferentes partes do mundo e, aos poucos, teve início um processo de gentrificação que se estende até hoje. Na década de 1990, o governo de Berlim investiu principalmente em escritórios, pensando em trazer um maior desenvolvimento econômico para a capital.

Além disso, devido a dívidas das empresas públicas de habitação, nos anos 2000, a cidade privatizou parte das moradias que possuía. Em 2004, Berlim vendeu mais de 65 mil apartamentos. Atualmente, a Deutsche Wohnen detém grande parcela destes apartamentos que foram vendidos na época.

“Foi sobretudo depois da crise mundial de 2008 que os apartamentos de moradia em Berlim começaram a ser objeto de interesse para o mercado financeiro internacional”, afirma Ulrike Hamann-Onnertz, diretora administrativa da Associação de Inquilinos de Berlim. “Desde 2011, 2012, ficou muito mais difícil encontrar aluguel a um preço acessível.”

Hoje em dia, além dos preços elevados, o descompasso entre a oferta e demanda de moradia é outro componente da crise imobiliária enfrentada pela cidade. “Essas grandes empresas privadas não constroem novos prédios populares, investem apenas dentro de um segmento de apartamentos de luxo”, afirma Hamann-Onnertz.

Diante da atual crise imobiliária, Berlim decidiu fazer o caminho inverso da decisão de 2004. Recentemente, as empresas públicas de habitação começaram a comprar apartamentos de investidores – quase duplicando sua porcentagem de moradias entre 2011 e 2022. Essas empresas públicas também são responsáveis pela maior parte das novas construções na cidade.

Porém, essas obras não estão ficando prontas na velocidade que seria necessária para atender à demanda. Nos últimos dez anos, não foram construídas moradias em número suficiente, em grande parte devido à explosão dos custos no setor da construção.

Tentativa de conter explosão dos aluguéis

A crise em Berlim levou os moradores da capital alemã a protestar contra a especulação do mercado imobiliário e contra as grandes empresas privadas de habitação, exigindo uma regulamentação rigorosa dos aluguéis. “Nós temos algumas leis, mas elas não são suficientemente aplicadas”, afirma Hamann-Onnertz.

Desde 2015, existe na Alemanha um mecanismo de congelamento chamado Freio do Valor do Aluguel, que determina que proprietários não podem alugar por valores mais de 10% superiores ao aluguel médio nas cidades – que, em Berlim, teoricamente seria entre sete e 10 euros por metro quadrado. Mas, na prática, isso não é respeitado.

Muitos não sabem da existência desse limite ou não exigem que ele seja aplicado por medo de terem o contrato rescindido. Por falta de fiscalização, o congelamento dos aluguéis acaba se tornando, frequentemente, ineficaz.

A associação para a qual Ulrike Hamann-Onnertz trabalha oferece consultoria com advogados para ajudar a defender os direitos desses inquilinos. Esse mecanismo pode, inclusive, ser aplicado posteriormente à assinatura do contrato.

Aluguel de temporada

Outro fator que estressou a já existente crise imobiliária de Berlim foi o mercado de aluguéis de temporada. Em fevereiro deste ano teve fim uma batalha judicial de 8 anos envolvendo esse tipo de imóvel. Um tribunal de Berlim decidiu que milhares de apartamentos usados como Airbnbs deveriam voltar para o mercado imobiliário tradicional, numa tentativa de combater a falta de moradia regular na cidade.

Em Berlim, aluguéis de temporada são parcialmente permitidos desde que os imóveis sejam registrados com essa função junto à administração da cidade. Enquanto isso, os apartamentos do mercado tradicional costumam ter contratos de aluguel por tempo indeterminado e fazem parte do estoque de moradia que serve à população residente.

Para contornar essa restrição, apartamentos mobiliados passaram a ser alugados temporariamente, a partir de diferentes plataformas, por preços até quatro vezes maior do que a média do metro quadrado. “Sabemos de outras cidades que é possível fazer muito mais dinheiro com apartamentos para turistas”, diz Ulrike. “É difícil controlar essas diferentes práticas, que são parcialmente ilegais, usadas para ganhar dinheiro com o estoque existente de moradia.”