Como presidente, ele modernizou o Estado brasileiro e institucionalizou direitos trabalhistas; como ditador e autocrata, atropelou direitos humanos e lançou as bases de um paternalismo político que perdura até hoje.Por volta das 7h30 da manhã de 24 de agosto de 1954, há 70 anos, o então presidente Getúlio Vargas tirou a própria vida. Ele estava em seus aposentos no Palácio do Catete, então sede do governo federal, no Rio, e vivia aos 72 anos uma intensa crise em sua segunda passagem pelo governo – ao qual regressara em 1951, eleito pelo voto direto, após o período o ditatorial conhecido como Estado Novo (1930-1945).

Da organização das relações de trabalho à criação da máquina institucional pública, Vargas deixou um legado que, em partes, até hoje norteia as esferas administrativas do Brasil. Além disso, sua imagem carismática de “pai dos pobres” e seu muito criticado estilo populista de governar ainda inspiram um segmento da política afeito à exploração eleitoral das mazelas sociais.

Da herança deixada por Vargas, o historiador e professor na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) Marco Antonio Villa destaca a modernização das relações de trabalho, com a criação da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), e a presença do Estado na economia.

Autor de obras como Um País Chamado Brasil, o pesquisador argumenta que, nos anos 1930, o varguismo significou a “modernização do Estado brasileiro”. “Você pode dizer que ali o Estado brasileiro moderno nasceu, com a estruturação de uma máquina de Estado, com a construção de um projeto nacional e novas bases totalmente diferentes da primeira República.”

Além da CLT, Vargas criou organismos como os então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, e o Ministério da Educação e Saúde. Também é de sua gestão a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Em sua segunda passagem pelo Catete, o presidente criaria o Conselho Nacional de Pesquisas, mais tarde rebatizado como Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e as estatais petrolífera Petrobras e do setor elétrico Eletrobras.

“Não podemos esquecer que o legado de Vargas é gigantesco. Ele foi o grande responsável por introduzir o Brasil no processo que envolve a grande indústria internacional, sobretudo com a siderurgia e o petróleo”, comenta o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

“Considero o mais importante da experiência de Vargas na condução do Estado brasileiro o esforço por uma relativa autonomia na inserção do Brasil no conjunto da economia mundial, tanto na década de 1930 quanto na de 1950”, contextualiza o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Para ele, essa autonomia foi marcada pela “constituição de um parque industrial dinâmico e da administração pública minimamente organizada e coordenada”.

A historiadora Isabel Bilhão, professora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), destaca a legislação trabalhista como um dos principais legados de Vargas, pelo conjunto de leis que “reuniu e consolidou em âmbito nacional as proteções e as garantias aos trabalhadores e trabalhadoras que vinham sendo estabelecidas desde os anos 1920, em decorrência de mobilizações e lutas operárias”.

Bilhão cita o direito a férias e aposentadoria, bem como “o estabelecimento do salário mínimo nacional em equidade para homens e mulheres”. “Em meu entendimento, essa legislação é fundamental não apenas por reconhecer direitos e garantias, mas também por se tornar um instrumento para que os trabalhadores pudessem, por meio de seus sindicatos, acessar a recém-criada Justiça do Trabalho.”

Ascensão ao poder

Nascido na zona rural de São Borja, no Rio Grande do Sul, Getúlio Dorneles Vargas serviu ao Exército na juventude e, depois, formou-se em direito na Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre, hoje Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A partir de 1909, teve uma longa carreira política: foi deputado estadual e federal, governador do Rio Grande do Sul, ministro da Fazenda e senador.

Ascendeu à Presidência em 1930 por um golpe de Estado, após perder a disputa eleitoral para o paulista Júlio Prestes (1882-1946) e liderar o grupo que acusou fraude no sistema. Chamou o seu governo de provisório até 1934, quando seguiu no cargo após vencer uma eleição convocada por ele próprio. Em 1937 deu um autogolpe, inaugurando o período ditatorial conhecido como Estado Novo.

Ameaçado de deposição, renunciou em 1945. Retornou ao poder pelo voto após vencer o pleito de 1950.

Manchas históricas

Mas os especialistas também lembram que há um legado negativo de Vargas, principalmente pelo fato de que sua primeira passagem pelo poder foi um regime ditatorial. “O mais marcante, em meu entendimento, é a associação entre ditaduras e conquistas de direitos sociais”, analisa Bilhão. “Como se os direitos sociais fossem uma concessão de governos ditatoriais, e não fruto dos esforços de várias gerações de trabalhadores.”

Na visão da historiadora, começou com Vargas a “lamentável” ideia, “reforçada com o regime civil-militar a partir de 1964”, de que “nos tempos da ditadura é que as coisas funcionavam”.

O sociólogo Ramirez acrescenta que a ditadura varguista também usou de instrumentos de censura e controle de propaganda.

“Em termos de direitos humanos, foi um desastre”, adiciona Villa. “É uma questão pouco estudada, mas a violência estatal começou, na prática, com o Estado Novo a partir de novembro de 1935.”

Martinez concorda: “Entendo que a grande herança maldita da passagem de Vargas pela política brasileira foi a consagração, em escala nacional, da violência política, pública e privada”.

“Violência moderada contra opositores e adversários políticos, e extrema contra as reivindicações populares, dos mais pobres, e sociais, de alcance transformador”, enumera o historiador. “No campo, pela apropriação e concentração da terra nas mãos de poucas famílias, em todos os estados; no movimento operário urbano, pela repressão implacável aos líderes sindicais e instituições culturais, como jornais, associações, clubes e escolas.”

Já o pesquisador e youtuber Paulo Rezzutti avalia que uma marca negativa de Vargas foi a imagem paternalista. “Isso marcou muito sua trajetória e ainda hoje se apresenta na sociedade brasileira, por meio de alguns políticos”, argumenta.

No fazer político-partidário, ele vê semelhanças entre o modus operandi atual do “carismático que tenta agradar a vários setores privados e também joga com o povo” e o jeito de Vargas conduzir o país. “Afaga um, depois afaga o outro. A gente encontra ainda esse tipo populista. É uma herança dele na sociedade atual”, diz Rezzutti.

Figura ambivalente

“O legado e a imagem de Vargas permanecem em disputa, tanto pelos partidos políticos, mas também pelas discordâncias em torno de sua memória”, comenta Bilhão. “Para alguns, ele seria principalmente o ditador que, com sua postura autoritária e personalista, foi conivente com diversas formas de violação de direitos e de perseguição e morte de opositores, colaborando também para a naturalização de uma cultura de corrupção da máquina pública.”

Mas ela pondera que, “para outros, o que predomina é a imagem de ‘pai dos pobres’, do político que estabeleceu direitos e garantias para os trabalhadores”.

Ela conclui que o principal projeto varguista que “permanece mais amplamente consolidado até a atualidade é o da construção de um capitalismo de viés nacionalista”. “Essa noção defende que não há a possibilidade de desenvolvimento econômico sem a constituição de um mercado consumidor interno e, para que ele exista, seria necessária a diminuição da brutal concentração de renda que historicamente assola o país.”

“Nessa perspectiva, a cidadania estaria associada tanto ao direito da população de consumir bens e produtos quanto de acessar serviços públicos que lhe proporcionem melhor qualidade de vida e mais chances de acesso e permanência no mercado de trabalho”, explica Bilhão.

Ramirez lembra ainda que as relações de proximidade entre Brasil e Estados Unidos, que persistem historicamente, são uma herança do período varguista que, depois de uma hesitação inicial, acabou se aliando aos americanos na Segunda Guerra.

O professor da Unesp Martinez comenta que muitas das conquistas varguistas se esfacelaram nas últimas décadas, do período da ditadura militar ao neoliberalismo implementado na redemocratização, com a sociedade cada vez mais exposta à “promíscua relação entre interesses econômicos e investimentos públicos”.

“Durante a ditadura militar as demandas sociais foram tratadas pelo governo do general de plantão com mão-de-ferro, prisão, tortura e morte”, denuncia ele. “Houve continuidade e aprimoramento nas técnicas de controle social, conduzidas pelo Estado nacional, em benefício de interesses de grupos econômicos nacionais e estrangeiros – inclusive como forma de alargamento e manutenção da base social de sustentação política e ideológica da ditadura pela classe média urbana, o empresariado e grandes proprietários de terras.”

“A relativa autonomia do Estado nacional na distribuição, ainda que pífia e pontual, da renda e da cultura no Brasil de Vargas, desapareceu sob os militares de 1964 e depois, se submeteu aos interesses do grande capital americano”, critica Martinez.