10/09/2024 - 16:47
Civis são forçados a vestir uniformes militares e a usar câmeras para explorar locais perigosos em Gaza, segundo relatos. ONG israelense de direitos humanos diz receber até três novos relatos de soldados por semana.Sentado em uma tenda em Khan Younis, a segunda maior cidade da Faixa de Gaza, Mohammad S. fala de um lado menos conhecido da guerra em Gaza.
Há quase um ano, as Forças de Defesa de Israel (IDF) vêm lutando contra o Hamas e outras organizações extremistas no enclave palestino, classificadas como organizações terroristas pela Alemanha, União Europeia, Estados Unidos, entre outros governos. O estopim foi um ataque sem precedentes contra Israel no dia 7 de outubro, quando, de acordo com fontes israelenses, milícias islâmicas mataram mais de 1.200 pessoas e levaram 251 reféns para Gaza.
Desde então, Israel tem alegado que o Hamas usa a população civil de Gaza como escudo humano. Imagens de armas e munições encontradas em escolas e hospitais, por exemplo, foram apresentadas como prova. Mas o relato do palestino Mohammad S. também incrimina soldados israelenses.
“Eles [soldados do exército israelense] nos vendaram os olhos e amarraram nossas mãos atrás das costas. Eles nos levaram em seus jipes e nos sentamos em uma casa”, descreveu Mohammad S. “No dia seguinte, eles nos levaram à força e disseram: Ou vocês vêm conosco ou nós os mataremos.” Essa rotina seguiu por 15 dias, segundo o relato do palestino. Seu trabalho era liderar o caminho quando havia perigo.
Comandos transmitidos por fones de ouvido
“Eles enviaram eu e outra pessoa em uma missão. Colocaram uma câmera em nossas mãos, além da câmera no capacete. E nos controlaram por meio de fones de ouvido e disseram: Pare aqui, vá para lá, filme esta casa, pare nesta rua”, descreveu Mohammad S.
De acordo com seu relato, ele teve que entrar em casas antes das tropas, assumindo riscos que os soldados israelenses não queriam enfrentar. Em outras palavras, o exército israelense o usou como escudo humano.
Nadav Weiman, diretor da ONG israelense de soldados veteranos Breaking the Silence (Quebrando o Silêncio, em inglês), confirma esses relatos. Desde dezembro, soldados que serviram na guerra em Gaza têm reportado à organização o uso de civis palestinos como escudos humanos.
Segundo ele, as IDF têm retirado palestinos das chamadas zonas humanitárias e os encaminhado para tropas em combate em Gaza. Vestidos com uniforme do exército e, às vezes, com câmeras presas ao capacete ou ao peito, palestinos são encarregados de fazer buscas em túneis ou casas – e de verificar se há bombas, armadilhas ou dispositivos semelhantes.
Em muitos lugares de Gaza, tropas israelenses descobriram entradas para túneis a partir dos quais os combatentes do Hamas têm operado. Entrar neles é um grande risco para os soldados. Isso também se aplica ao combate urbano em muitas partes do enclave.
ONG recebe até três relatos por semana
A Breaking the Silence recebe entre dois e três novos relatos de soldados toda semana. Para Weiman, isso prova que não são casos isolados, mas que a prática de enviar civis palestinos para situações perigosas é generalizada – acontece há meses, em toda a Faixa de Gaza, em várias unidades militares.
“Em uma unidade, o oficial disse: ‘Você não precisa pensar em crimes de guerra, eu sou seu oficial. Vocês não precisam pensar, têm de seguir as ordens.’ Em outro lugar, eles disseram: ‘Você prefere morrer? Nós preferimos que o palestino morra.'”
Outro palestino, Mohammad A., também relatou ter sido forçado, sob a mira de uma arma, a entrar em prédios por 15 dias.
Ele disse que os soldados o vestiram com um uniforme israelense para que ele fosse o alvo, não os soldados israelenses. O medo de morrer o acompanhou por todo o tempo, seja assassinado por combatentes entrincheirados do Hamas ou por armadilhas ou bombas.
Mohammad A. relatou à emissora pública alemã ARD como teve de entrar em muitas casas antes dos soldados, filmar o interior e abrir todas as portas. Às vezes, ele era acompanhado por um drone.
“Não é autodefesa, é uma guerra política”
Mohammad A. disse que foi libertado por soldados israelenses em abril, mas que ainda tem pesadelos relacionados a momentos da época, como quando ele procurou tropas israelenses em um hospital.
“Foi horrível. Havia cadáveres por toda parte no hospital Nasser. Não acredito que consegui sair de lá. Ainda tenho pesadelos e acordo durante a noite.”
O exército israelense respondeu à reportagem da ARD com uma resposta padrão: “As diretrizes da IDF proíbem o uso de civis capturados em Gaza em missões militares que os coloquem em risco. As alegações foram encaminhadas às autoridades competentes para investigação”.
Para Weiman, essas acusações não vão apenas contra a lei humanitária internacional, mas também contra os padrões éticos do exército israelense. “Acreditamos que precisamos de um exército e que temos que nos defender”, disse. “Mas o que vemos em Gaza não é autodefesa, é uma guerra política”, concluiu. E para se discutir uma solução política, é crucial revelar como a IDF opera em Gaza, arrematou.
Antes de terminar a entrevista, Mohammad S. mostra um curativo em seu peito, lembrança de sua última missão, quando foi enviado para frente das tropas mais uma vez. A última coisa de que ele se lembra, antes de acordar no hospital, é do tiro. Ao menos ele sobreviveu para contar sua história.