13/09/2024 - 13:20
Em artigo na revista “Nature”, cientistas apontam que não há base para sustentar afirmação bastante difundida nos últimos anos por reportagens, ONGs, celebridades, autoridades e até publicações científicas.A alegação de que 80% da biodiversidade mundial é encontrada nos territórios dos povos indígenas não tem base alguma. Um artigo publicado no começo deste mês pela revista científica Nature aponta que não há dados para sustentar a afirmação, muito citada nos últimos anos em reportagens, artigos de notícias e até em publicações científicas.
Em abril deste ano, por exemplo, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, citou o dado durante um pronunciamento em cadeia nacional, ao afirmar que “os territórios indígenas preservam 80% de toda a biodiversidade do planeta”. Em 2022, o diretor de cinema James Cameron foi outro que citou a afirmação ao promover um novo filme da franquia Avatar. A lista é longa.
Só que os autores do artigo da Nature afirmam que a alegação é “uma estatística sem fundamento”, não apoiada por nenhum dado real e alertam que ela até mesmo colocar em risco os próprios esforços de preservação ambiental liderados por povos indígenas.
“O uso contínuo desse número por agências das Nações Unidas, organizações não governamentais (ONGs), jornalistas, biólogos conservacionistas e ativistas e defensores indígenas, entre outros, pode prejudicar a causa exata que ele está sendo usado para apoiar”, afirma o texto.
Os pesquisadores ressaltam que as comunidades indígenas desempenham “papéis essenciais” na conservação da biodiversidade, mas apontam que a alegação de 80% é simplesmente “errada”.
O texto, escrito por 13 autores, incluindo três cientistas de origem indígena, levou cerca de cinco anos para ser produzido. “Houve relatórios de políticas usando esse número. Houve relatórios científicos. Ele foi citado em mais de 180 publicações científicas”, diz Álvaro Fernández-Llamazares, etnobiólogo da Universitat Autònoma de Barcelona e um dos autores do artigo.
“Diversidade não pode ser facilmente quantificada”
A peça publicada na Nature afirma que a alegação de 80% “é baseada em duas suposições enganosas: de que a biodiversidade pode ser dividida em unidades contáveis e que estas podem ser mapeadas espacialmente em nível global”. O cientistas observam, entretanto que “nenhum dos feitos é possível”, pois biodiversidade “não é algo que pode ser facilmente quantificado”.
Fernández-Llamazares enfatiza, segundo o jornal britânico The Guardian, que a intenção não é culpar aqueles que usaram o número. “O que estamos questionando é: como pode ser que esse número tenha ficado sem ser questionado por tantos anos?”, ressalta o cientista.
Para buscar a origem da afirmação, os cientistas pesquisaram décadas de literatura e citações. Eles afirmam que não encontraram nenhuma referência aos “80%” antes de 2002 e que a porcentagem começou a ser popularizada nos anos seguintes.
Embora não tenham encontrado nada que se assemelhasse a um cálculo real, os cientistas acharam relatórios da ONU e do Banco Mundial do início dos anos 2000 que parecem ter contribuído para popularização da cifra distorcida. Estes textos, por sua vez, citaram um artigo de uma enciclopédia sobre regiões ocupadas por povos indígenas e pesquisas que apontavam que algumas tribos nas Filipinas estavam “mantendo mais de 80% da cobertura florestal original de alta biodiversidade”.
Nos anos seguintes, uma versão distorcida dessa afirmação ganhou tração e passou a englobar povos indígenas em geral em todo o mundo, não só em relatórios de ONGs, mas também em artigos cinetíficos.
Segundo os autores, ao menos 186 estudos publicados em revistas científicas como a BioScience e The Lancet Planetary Health incluiram o dado não comprovado. Como um exemplo de como a porcentagem de “80%” ganhou popularidade mundo afora, os autores também mencionam como ela foi usada pelo diretor James Cameron em 2022 e até mesmo por um site de checagem que a tomou como verdadeira.
Os autores da peça publicada pela Nature ressaltam, entretanto, que a crítica à alegação dos 80% não tem intuito de “minar décadas de esforço de organizações de povos indígenas” na luta para preservar a biodiversidade e influenciar a política climática e também não quer diminuir o papel “essencial e verificável considerável que os povos indígenas desempenham na conservação da biodiversidade do planeta”.
md/jps (ots, Nature)