Em junho deste ano, o fogo subiu sobre a vegetação do Círculo Ártico, em um incêndio atípico que queimou regiões do nordeste da Rússia. Em julho, chamas avançaram sobre o Canadá e os Estados Unidos, mesmo mês em que a Bolívia viu sua porção da Amazônia pegar fogo no maior nível em 21 anos. Os incêndios também se alastraram pelo Brasil, cuja floresta queima ao mesmo tempo que partes da savana africana. Em todos os casos, nuvens densas de fumaça formam rios de poluição que derrubam a qualidade do ar em todo o planeta.

Para Mark Parrington, cientista sênior do Serviço de Monitoramento Atmosférico do Observatório Copernicus (Cams), isso mostra como a atmosfera está interconectada. “Essas emissões se acumulam, são captadas pelos ventos e são levadas por milhares de quilômetros, atravessando escalas intercontinentais”, disse à DW.

Apesar da sazonalidade de algumas destas queimadas, os dados do Cams mostram que, aos poucos, elas se tornam mais comuns. Em casos como o brasileiro, por exemplo, fogem da curva projetada pela série históricae remontam a emissões de carbono observadas há 20 anos.

O Cams usa análises de satélite sobre incêndios ativos ao redor do mundo para identificar locais e estimar o quanto de emissões de gases de efeito estufa, carbono, material particulado e poluição relacionada à queima de vegetação estão sendo liberados.

Os dados do sistema já calculavam picos de emissão de gases em estados como Amazonas e Mato Grosso do Sul, quando a fumaça já encobria municípios como Manaus. Desde então,os gases prejudiciais à saúde só se espalharam, como mostrou a DW, derrubando a qualidade do ar em quase todas as capitais.

Segundo Parrington estes gases também correm em direção ao Atlântico Sul e o Sul da África. Para ele, este rastro de poluição deixado pelas fumaças é um dos principais problemas das queimadas e são um indicador de sua intensidade. “Depois do perigo que o incêndio representa para a vida, acho que a qualidade do ar é o fator mais importante. Alguns estudos mostram que o número de mortes atribuíveis à qualidade do ar devido à poluição por fumaça é muito alto”, disse.

Leia a entrevista completa:

DW: Qual a intensidade de gases nocivos ao meio ambiente emitidos pelas queimadas na América do Sul?

Mark Parrington: O que o Cams mostra para a América do Sul este ano é complexo, pois os padrões espaciais podem mudar bastante, mesmo dentro do Brasil. Mas o que vimos até agora este ano na região é que, na maior parte dos meses, a Bolívia tem registrado as maiores emissões em comparação com os outros anos que temos dados. Ao longo de agosto e entrando em setembro, quando há um aumento sazonal das queimadas no Brasil, na Amazônia e nas partes centrais da América do Sul, essas emissões continuaram em níveis muito intensos, muito acima da média.

Estes níveis acima da média também são registrados no Brasil?

No Brasil, as emissões estão entre as mais altas. Elas têm seguido um padrão semelhante ao dos anos 2000, quando houve muitos incêndios na Amazônia, particularmente nos estados do Mato Grosso, Pará e Rondônia. Em geral, essas emissões resultantes de incêndios florestais nos últimos anos têm sido mais baixas do que há 20 anos, mas aumentaram em comparação com 10 anos atrás.

Ao analisar o Brasil mais detalhadamente, você vê padrões diferentes. Por exemplo, no Mato Grosso, nas últimas semanas, as emissões ficaram acima da média, mas ainda dentro do intervalo observado nas últimas duas décadas. Já no Amazonas a situação nos últimos cinco ou seis anos tem sido o oposto. Até o final de agosto, o estado já havia registrado seu maior volume anual de emissões de incêndios no período em que temos dados. O mesmo ocorreu em Mato Grosso do Sul, de julho a agosto, com o maior total anual de emissões registrado para o estado. Os padrões são muito diferentes, mas o que os dados mostram é bastante evidente.

A fumaça emitida por estas queimadas foi percebida em diversas regiões do país. Ela deve se espalhar ainda mais e atingir outras regiões do planeta?

As emissões de queimadas são muito heterogêneas em termos de distribuição espacial e temporal. Mas quando há grandes incêndios, eles dominam o sinal de poluição atmosférica. Nós temos observado, há várias semanas, uma enorme massa de fumaça sobre as partes centrais da América do Sul, que se espalha. Em determinado momento, essa fumaça se estendeu desde Quito, no Equador, até São Paulo e chegou ao Atlântico Sul, cobrindo alguns milhares de quilômetros. E começamos a ver mais dessa fumaça sendo captada pelo vento e soprada em direção ao sul da África. Geralmente, ela não chega no continente, mas segue para o sul e depois vai para o Oceano Índico. Isso não é incomum, porque é assim que funciona o transporte atmosférico. Mas esse fenômeno se destaca quando há quantidades maiores de fumaça na atmosfera.

Essa nuvem tem sido bastante densa, mesmo atravessando os oceanos, e o fato de ainda apresentar valores tão altos [de poluição atmosférica] mesmo estando tão distante [da fonte], é um indicador da quantidade de gases que foi emitida inicialmente. Essas emissões se acumulam, são captadas pelos ventos e são levadas por milhares de quilômetros, atravessando escalas intercontinentais.

Isso não acontece só na América do Sul, mas também na América do Norte. Nós tivemos um episódio em agosto quando uma nuvem densa cruzou o Noroeste do Canadá e o Atlântico [até a Europa]. Não é um fenômeno novo, mas quando acontece nessa escala, e é tão percebida em outro continente, isso demonstra o quão conectados estamos por meio da atmosfera.

Há outras regiões registrando emissões acima do normal no momento?

Nas últimas semanas, tem sido principalmente na América do Norte e na América do Sul. Mas ao olhar para o mapa, também é possível ver os incêndios e a fumaça que vem da África tropical meridional [região de savanas africanas], proveniente de incêndios sazonais. Em geral, essas emissões têm diminuído, mas estão alinhadas com a média dos últimos 20 anos. Um pouco mais cedo, durante o verão, também houve incêndios na Sibéria, no nordeste da Rússia, no Círculo Ártico, que temos monitorado nos últimos cinco ou seis anos.

À medida que nos afastamos da estação seca na América do Sul, provavelmente começaremos a ver, em outubro e novembro, queimadas no norte da Índia, que ocorrem todos os anos nessa época e geralmente resultam em nuvens de fumaça bastante visíveis e em baixa qualidade do ar. Há muita sazonalidade em alguns desses incêndios.

Existe uma discussão sobre o quanto florestas como a Amazônia sofrem com as mudanças climáticas e podem atingir pontos de estresse e se tornarem menos resilientes. Estes incêndios e suas consequências impactam os índices de aquecimento global ou são por ele impactados?

Nos últimos anos, o trabalho realizado pela Global Carbon Projects, que analisa o impacto de diferentes setores na taxa de CO2 na atmosfera, mostra que o fogo tem apenas uma pequena parte nisso, e essas emissões são muito menores do que as de combustíveis fósseis. Então, em geral, não se observa tamanha participação dos incêndios na emissão de CO2 na atmosfera [em comparação com outros setores]. Isso ocorre porque algumas das emissões são reabsorvidas.

Mas a questão é, e isso é uma área ativa de pesquisa, se esses cálculos ainda são válidos com as mudanças climáticas. Como as mudanças climáticas estão alterando o ciclo do carbono? Ela vai mudar esse equilíbrio? É necessário repensar como os incêndios contribuem para as emissões de CO2 em todo o mundo e como isso contribui para as mudanças climáticas? O ponto importante é que as emissões de material particulado, benzeno e uma série de produtos químicos tóxicos e cancerígenos [provenientes de queimadas] se comportam da mesma forma que o carbono e o dióxido de carbono [emitidos pela indústria]. E há impactos diretos na atmosfera e na saúde humana por meio da qualidade do ar e da água, que são imediatos e mensuráveis.

Onde estes impactos são mais sentidos?

Com certeza localmente. Os impactos na superfície são menores quanto mais longe você estiver, mas não é impossível que essas massas de ar com muitos desses poluentes também atinjam a superfície em outro continente. Depois do perigo que o incêndio representa para a vida, acho que a qualidade do ar é o fator mais importante. Alguns estudos mostram que o número de mortes atribuíveis à qualidade do ar devido à poluição por fumaça é muito alto.

Este cenário está se tornando mais permanente?

Acho que, nos últimos anos, isso parece ser verdade. Em especial quando você sai dos trópicos e vai para alguns lugares que antes não costumavam ter incêndios florestais ou que tinham com pouca frequência. Em alguns desses lugares, o fogo parece ter se tornado mais prevalente nos últimos anos. Quanto aos incêndios dentro do Círculo Ártico, por exemplo, sempre houve especulações sobre isso, devido às mudanças climáticas e os impactos nessas latitudes elevadas, que indicavam que haveria incêndios no Ártico e que poderiam ser bastante significativos. E isso realmente aconteceu em 2019 e 2020, e, desde então, parece que a frequência tem sido maior do que víamos na década de 2000.