06/10/2024 - 5:32
Com mais de 500 mil servidores públicos ativos somente no Executivo Federal civil, Brasil vê crescer número de concurseiros que atuam também como influenciadores digitais do serviço público.Assim que terminou a graduação em engenharia de controle e automação, Laura Amorim, de 31 anos, não encontrou vagas na área. Como sempre se considerou boa fazendo provas, decidiu estudar para concursos públicos. O objetivo era ser auditora fiscal, cuja remuneração inicial pode chegar a R$ 22 mil.
Cerca de dois anos depois, a aprovação veio. Entretanto, quando foi chamada a assumir a vaga, Laura desistiu. Entre começar a estudar, passar no concurso e ser nomeada, outra carreira fisgou a engenheira: a de influencer digital de concursos.
“Quando a nomeação chegou, já não fazia mais sentido, eu já estava engajada no trabalho na internet”, diz Amorim, que tem 320 mil seguidores no Instagram, 260 mil no Youtube e abriu uma empresa na qual comercializa materiais de estudo.
Ela não é a única a seguir esse caminho. Cada vez mais concurseiros, aspirantes a servidores e funcionários públicos têm usado as redes sociais para compartilhar a rotina de estudos, vender materiais e divulgar métodos de aprendizagem e realização de provas.
Diante do sucesso dessas páginas, alguns acabam desistindo quando a vaga chega, outros permanecem em dupla jornada. Esse movimento tem forçado as instituições governamentais a estabelecerem regras de como os servidores podem usar as redes sociais enquanto ocupam uma vaga nos serviços do governo.
No fim do ano passado, por exemplo, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) publicou uma instrução normativa na qual disciplina a utilização de símbolos e da imagem institucional do órgão, pelos servidores, nas redes sociais. O órgão diz que já atuou em casos de descumprimento da normativa, afastou e puniu servidores, mas não divulgou um número de casos.
A Polícia Federal é outro órgão que tem desde o ano passado uma instrução normativa sobre o tema. Para a PF, “atividades de coaching e similares, destinadas à assessoria individual ou coletiva de pessoas, inclusive na preparação de candidatos a concursos públicos, são vedadas”. A única exceção é quando isso ocorre em escolas de governo.
Tanto a PRF quanto a PF proíbem que os servidores usem nas contas pessoais símbolos, armamentos, equipamentos, nome ou qualquer imagem do órgão para a obtenção de vantagem comercial, financeira ou eleitoral. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também tem desde 2019 uma normativa disciplinando o uso das redes por parte dos juízes, que proíbe o uso da marca ou a logomarca da instituição como forma de identificação pessoal.
A Polícia Penal do Espírito Santo é outra instituição que criou normas neste ano, na qual proíbe os servidores de divulgar imagens coletadas em diligências ou informações obtidas durante o exercício profissional. No ano passado, a Secretaria de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) também criou normas, depois que a Defensoria Pública da União (DPU) e pelo Ministério Público Federal (MPF) identificaram agentes da corporação concedendo entrevistas em podcasts e canais do YouTube confessando condutas criminosas.
Apesar disso, não é difícil encontrar servidores de órgãos das polícias estaduais e federais que publicam conteúdos sobre concursos e usam as fardas e distintivos nessas postagens. Procurando por hashtags no Instagram e no Youtube, a DW encontrou diversos perfis de agentes das polícias Civil do Distrito Federal, Rodoviária Federal, Penal de Minas Gerais e Militar de São Paulo que divulgam conteúdos para concursos utilizando fardas e imagens dos distintivos.
O novo sonho do concurseiro
O primeiro concurso público realizado no Brasil foi em 1937, para o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI). Com a Constituição Federal de 1988 e a expansão dos serviços públicos, o interesse em ocupar uma dessas vagas cresceu, movido pelos argumentos de estabilidade na carreira e previsibilidade na rotina, além de remunerações atraentes frente à média nacional.
“Os concursos brasileiros têm muitos problemas, mas o Brasil conseguiu criar uma cultura de impessoalidade. Então, salvo exceções pontuais, o concurso é visto como um instrumento de razoável meritocracia”, explica Felipe Fonte, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito Rio.
Não à toa, mais de 2,1 milhões de pessoas se inscreveram para participar do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU). O chamado “Enem dos Concursos” tem 6,6 mil vagas em 21 órgãos do Governo Federal e divulgará o resultado das provas objetivas neste dia 8 de outubro. A metade dos candidatos inscritos é de pessoas que ganham até três salários mínimos.
Somente o poder executivo federal civil, contando os servidores da segurança pública do governo do Distrito Federal, tem atualmente cerca de 1,1 milhão de servidores, dos quais 573 mil estão ativos. Em 2024, de acordo com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, foram autorizados no âmbito federal 12 concursos, com 1,4 mil vagas no total.
Por outro lado, afirma Fonte, os concursos são considerados mais difíceis do que no passado. “Há um contingente grande de pessoas entrando no mercado de trabalho, não há mais tantos cargos como antes, nem vagas. E há mais mecanismos para estudar na internet”, afirma.
A dificuldade de entrar numa vaga é um motivo que fortalece o mercado de influencers, tanto porque as pessoas precisam de maior dedicação e muitas vezes tempo para passar, quanto porque qualquer ajuda de quem já viveu a experiência é considerada bem-vinda.
“Quando você embarca nisso, é uma coisa muito solitária. E no fim do dia, você não tem muito a entregar. É diferente de um trabalho em que você apresenta algo para o chefe ou o cliente”, lembra Amorim.
Perfis custeiam viagens para fazer provas
Não se sentir sozinha enquanto estudava foi a motivação de Amorim para abrir o perfil no Instagram. Mas afastar a solidão não é a única motivação dos concurseiros influencers. A outra é juntar dinheiro para realizar as provas em outros estados e ter renda enquanto esperam a nomeação.
Amorim, por exemplo, abriu mão de outro cargo público para se dedicar aos estudos que a fizeram passar no concurso de auditoria fiscal. Quando passou, precisou aguardar cerca de dois anos até ser nomeada. Durante esse tempo, manteve-se vendendo mapas mentais para outros concurseiros.
Formado em engenharia mecânica, Renan Cristofori, de 33 anos, começou a estudar para concursos também em 2017 e encontrou na internet uma forma de financiar as viagens para fazer as provas. Ele começou a vender planilhas para organizar horários e conteúdos depois de bater na trave em um concurso no qual precisou viajar para São Paulo.
“Eu não fiquei dentro das vagas iniciais e isso me gerou uma frustração. Aí eu pensei: vou vender minha planilha na internet, para arrecadar dinheiro e fazer outras provas”, conta. Em 2019, ele deixou os estudos de lado, pois as vendas estavam dando certo.
Em 2022, Cristofori foi chamado para a vaga de auditor fiscal em Guarulhos, passou três meses no cargo e depois decidiu sair. “Eu mudei da água para o vinho nesse período. Percebi que a vaga no serviço público não combinava mais com o meu perfil”, diz ele, que passou a valorizar a flexibilidade de horário e a liberdade geográfica.
Cristofori diz que quando começou a produzir conteúdos para a internet, em 2017, eram raros os concurseiros influencers. “Hoje é quase um pré-requisito, você vai estudar para concurso e já abre um Instagram de concurseiro, já posta o seu dia a dia. Tem pessoas que têm um perfil pessoal e o abandonam, porque querem focar só no meio de concurso. Às vezes, não botam nem a foto, para os familiares não saberem que a pessoa está estudando”, conta.
Limites e possibilidade da dupla jornada
Atualmente, Amorim e Cristofori têm uma empresa em conjunto, a Estudei, uma plataforma de organização e acompanhamento de estudos para concursos. Por meio dela, eles também recrutam outros influencers e criadores de conteúdos digitais para divulgar seus produtos. É assim que muitos influencers da área começam a ganhar dinheiro e fazem os próprios perfis se destacarem nas redes.
É o caso de Taís Militão, de 30 anos, que tem o objetivo de passar num concurso na área de direito trabalhista. Quando começou a estudar para concurso, ela criou um perfil no Instagram dedicado apenas a seguir alguns influencers e postar desabafos e dicas de livros.
“Naquele mesmo ano, surgiu a primeira parceria. Um curso entrou em contato comigo, para me disponibilizar material e pagar passagens para concursos. Aquilo virou uma chave na minha cabeça”, conta. Hoje, esse é o seu trabalho principal, enquanto segue estudando para concursos.
Já Hugo Freitas, de 31 anos, chegou a tentar uma rotina dupla de servidor do Tribunal de Justiça de São Paulo e influenciador digital. Ele começou a estudar para concursos em 2018 e desde então tem um canal no YouTube. Quando passou na vaga, manteve as postagens.
“Era puxado, porque eu tinha uma rotina normal, de nove às cinco da tarde, passava o dia inteiro no tribunal e morava longe. Quando chegava em casa, por volta das 20h, ia preparar os conteúdos”, conta. Hugo abandonou a vaga pública cerca de um ano depois e, por causa disso, sofreu hate dos seguidores.
“Chegou um momento que ficou inconciliável, e eu via mais potencial de crescer no digital, mas não foi uma decisão fácil”, conta ele, que hoje mantém uma empresa, a 123 Passei, para comercializar materiais para estudo.
A decisão também foi pautada pelas limitações impostas pelo serviço público, já que existem regras sobre o que pode ser compartilhado da rotina no serviço público, bem como de que tipo de servidor pode manter atividades profissionais paralelas.
De acordo com Felipe Fonte, da FGV, os servidores devem observar o regime jurídico e normas internas de cada ente corporativo, já que elas podem variar de acordo com o órgão público e a instância administrativa. “Mas normalmente as leis e estatutos do servidor são antigos, então elas não dizem com clareza o que acontece em relação à internet”, diz.
Fonte alerta também que algumas carreiras, como a de magistratura e Ministério Público, são atividades submetidas a regimes especiais e órgãos como o CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público.
“O artigo 296 do Código Penal também prevê limites para o uso de símbolos públicos e distintivos. Mas nunca vi essa regra sendo aplicada num caso concreto”, diz. Alguns órgãos também proíbem os servidores de abrir empresas e participar de sociedades.