Parlamento russo analisa proposta de multar quem incentivar uma vida sem filhos, o que seria uma afronta à “família tradicional”. Guerra na Ucrânia é uma das razões para ameaça a direitos básicos das mulheres.Daria, cujo nome verdadeiro ela prefere não divulgar, tem 40 anos e está hoje convicta de que não quer ter filhos. Mas nem sempre foi assim.

“Eu estava na fila da fertilização in vitro e me submetendo a exames médicos quando percebi: não tenho desejo de ter um filho”, conta à DW. “Esses pensamentos e vontades foram impostos a mim pela sociedade em que eu vivia.”

Daria cresceu em Yekaterinburg, cidade relativamente grande a cerca de 1.600 quilômetros a leste de Moscou. Como muitas mulheres russas, seus pais e todo o seu entorno esperavam que ela tivesse uma família e filhos até os 30 anos de idade.

A decisão de não ter filhos é mais do que apenas uma questão privada. “O direito de escolha de ser ou não ser mãe é um dos direitos humanos mais fundamentais”, defende. “Somente você pode decidir, não seus pais, nem seu governo.”

Ela diz que compartilhou sua história para apoiar aqueles que, como ela, estão lutando por esse direito, em um momento crucial no país. Tramita no Parlamento da Rússia uma lei que visa proibir a “ideologia” de quem apoia abertamente uma vida “child free”, ou seja, sem filhos – vista como prejudicial aos “valores tradicionais” russos.

Vyacheslav Volodin, presidente da Duma, a câmara baixa do Parlamento, anunciou recentemente que as multas por “propaganda de ausência de filhos” serão de até 400 mil rublos (R$ 22,8 mil) para pessoas físicas e de até 5 milhões de rublos (R$ 285,2 mil) para empresas.

Essa legislação é baseada em uma lei de 2022 que proíbe a “propaganda LGBTQ+”.

Afronta aos direitos das mulheres na Rússia

Daria diz que a notícia a deixou fisicamente doente – e ela percebe isso como mais um passo em uma repressão sistemática aos direitos das mulheres na Rússia.

A promoção dos “valores tradicionais” pela Igreja Ortodoxa Russa e pelos círculos conservadores não é um fato novo, mas, especialmente desde a invasão na Ucrânia em 2022, as russas têm sido pressionadas a dar à luz.

O primeiro esboço dessa nova lei para proibir a “ideologia sem filhos” foi discutido na Duma em setembro de 2022. No ano seguinte, “lições sobre família” foram introduzidas nas escolas. De acordo com as autoridades, seu objetivo é “formar uma sociedade saudável” e aumentar a “popularização de famílias numerosas”. Vários parlamentares levantaram a ideia de impor impostos às famílias sem filhos.

Ao mesmo tempo, o acesso à contracepção de emergência e ao aborto tem sido limitado na Rússia. Novas diretrizes do Ministério da Saúde instruem a classe médica sobre a melhor forma de dissuadir as mulheres de fazer um aborto, enquanto muitas clínicas particulares perderam a licença para realizar abortos. Dez regiões da Rússia impuseram multas por “induzir” mulheres a abortar.

Taxa de natalidade no nível mais baixo

Tudo isso ocorre no momento em que a Rússia enfrenta uma crise demográfica. Dados oficiais mostram que a taxa de natalidade está em seu nível mais baixo desde 1999. Autoridades do país chamaram esse fato de “catastrófico” para o futuro da Rússia.

Ao mesmo tempo, a mortalidade está aumentando, com centenas de milhares de mortos na guerra em curso na Ucrânia, enquanto outros milhares fugiram do país para evitar o recrutamento.

O presidente Vladimir Putin apontou a melhoria da taxa de natalidade como uma de suas prioridades e declarou 2024 como o ano da família na Rússia.

Mas a instabilidade política e econômica tem desencorajado os russos a terem filhos. Um estudo realizado em maio de 2023 pela Universidade HSE em Moscou constatou que 30% dos entrevistados que antes queriam ter filhos decidiram adiar ou não tê-los.

E não será uma multa que aumentará a taxa de natalidade no país, argumentam especialistas.

“Para mim, isso parece mais histeria do que política”, disse à DW Alexey Raksha, um demógrafo independente de Moscou. “Você pode proibir tudo e isso não fará diferença. Somente o apoio financeiro para famílias com um segundo e terceiro filhos aumentará a taxa de natalidade.”

No entanto, de acordo com as projeções do orçamento federal para 2025, o governo russo está planejando cortar os gastos com assistência social e, em vez disso, aumentar sua máquina de guerra.

Espaços seguros deixarão de ser seguros

Para Maria Karnovich-Valua, ativista dos direitos das mulheres que vive em exílio, essa lei não é uma tentativa de aumentar a taxa de natalidade, mas “de silenciar as vozes que falam sobre liberdades reprodutivas na esfera pública”. Ela é co-apresentadora de um podcast sobre saúde mental e desafios da paternidade e teme que essa nova lei possa afetar seu trabalho.

Irina Feinmann, ativista dos direitos das mulheres da cidade de Petrozavodsk, perto da fronteira com a Finlândia, também está preocupada. Ela mantém um grupo na rede social russa VK onde mulheres trocam suas experiências sobre gravidez, parto e maternidade.

“Muitas mulheres que decidem não ter filhos não encontram apoio entre seus parentes e colegas”, explica Feinmann. “Esses grupos oferecem um espaço seguro para elas, onde não serão julgadas.” Mas ela está preocupada com o fato de que, se essa lei entrar em vigor, esses espaços poderão não ser mais seguros.

De fato, vários grupos no VK que abordam a “ideologia sem filhos” já foram bloqueados depois que um tribunal na região de Tver, na Rússia central, decidiu que eles “prejudicam a moral dos cidadãos”. Agora, Feinmann teme que também tenha que fechar seu grupo.