No cinema, programas de TV, publicidade, sua ária ‘Nessun dorma’ está em todos os ouvidos. Mas os méritos do italiano Giacomo Puccini vão muito além, e garantem um lugar de honra nos teatros, 100 anos após sua morte.A notícia chegada por volta de 11 horas de 29 de novembro de 1924 às redações de jornal do mundo se espalhou como fogo de palha: Giacomo Puccini, o mais famoso compositor de óperas de seu tempo, morrera em Bruxelas das sequelas de uma cirurgia de câncer da faringe.

Às vésperas do 66º aniversário, o coração do fumante inveterado não resistira ao tratamento pós-operatório radiológico, uma técnica ainda incipiente na época. Em suas quatro décadas de vida criativa, ele só compusera dez óperas, mas que bastaram para transformá-lo numa celebridade internacional. Ainda aos 35 anos, em 1893, sua terceira criação, Manon Lescaut, o transformara numa celebridade instantânea.

Árias como Sì, mi chiamano Mimi (La Bohème), Vissi d’arte e E lucevan le stelle (Tosca) Un bel dì vedremo (Madama Butterfly), O mio babbino caro (Il Trittico) – e, é claro, a espetacular Nessun dorma, de sua última obra, Turandot – eram cantaroladas pelas ruas das metrópoles, e hoje integram o inconsciente melódico universal. Mesmo em tempos de guerras e crises, a cada ano estreiam-se mais de 2 mil novas montagens puccinianas por tudo o mundo.

Assim, no ranking dos compositores de ópera mais populares, ele ganha de longe dos colegas Gioacchino Rossini e Richard Wagner: só mesmo Giuseppe Verdi e Wolfgang Amadeus Mozart são apresentados com mais frequência. Por outro lado, ambos também compuseram bem mais do que ele. Assim, numa média ponderada, é bem possível que o italiano natural de Lucca seja o verdadeiro campeão das casas de ópera.

Alta qualidade musical ou mau gosto popular?

“Na verdade, eu sempre me perguntei por que Puccini é tão bem-sucedido”, reflete o musicólogo alemão Arnold Jacobshagen, que acaba de lançar uma biografia do compositor. “Quanto mais eu me ocupei do assunto, mais me convenci que isso se deve, de fato, à qualidade da música, e não ao mau gosto do público – como afirmam as más línguas.”

Ele atribui esse imenso êxito a três características principais: em primeiro lugar, Puccini era um perfeccionista extremo, um mestre “do exagero e da moderação”. Ou, como ele próprio formulou certa vez: “Um bom músico tem que saber tudo, mas não dar tudo.” Até hoje, a precisão técnica de suas partituras assombra regentes, cantores e músicos de orquestra.

Em segundo lugar, ele tinha um excelente senso de teatralidade. “Puccini é o autor trágico mais representado no mundo, ao lado de William Shakespeare, Giuseppe Verdi e Henrik Ibsen”, constata Jacobshagen. Ele compunha em colaboração estreita com libretistas escolhidos a dedo e com o editor Giulio Ricordi, a motor por trás da marca Puccini. E assim criou histórias sempre novas e excitantes sobre os temas operísticos clássicos: amor, sofrimento, sacrifício, morte.

Por fim, sua música tem uma capacidade inigualável de falar ao ouvinte de forma drástica e imediata. O historiador britânico Julian Budden, especializado em ópera, confirma: “Nenhum compositor se comunicava tão diretamente com seu público quanto Puccini.”

Proximidade com Bach – e Mussolini?

Em termos de pedigree musical, há quem trace paralelos entre o italiano nascido em 1858 e o grande Johann Sebastian Bach (1685-1750). De fato, ambos provinham de vastas e reverenciadas dinastias da música sacra.

Os Puccini marcaram a vida cultural da região da Toscana, desde o começo do século 18. O primeiro foi seu bisavô, Giacomo, nascido em 1712 e, a partir 1739, organista e maestro di cappella da catedral da então uma república independente de Lucca. Do casamento com a cantora Angela Maria Piccinini resultou Antonio que, juntamente com seu filho Michele, dominariam a vida musical da cidade no século seguinte.

Giacomo Antonio Domenico Michele Secondo Maria Puccini nasceu em 22 de dezembro de 1858. Plantado no seio da elite musical lucana, ele se beneficiou da melhor educação possível, e aos 14 anos já era contratado como organista. Porém seus caminhos o afastaram de igreja, em direção às casas de ópera.

E aqui terminam os paralelos com Bach. Para o musicólogo Jacobshagen, essa comparação que “data dos tempos do fascismo e do nacional-socialismo alemão” é, de qualquer modo, forçada. É que, na tentativa de aproximar culturalmente as duas ditaduras, “Puccini era um candidato ideal para ser associado a um dos grandes heróis do passado musical alemão”.

Como parte da elite italiana, ele tinha suas simpatias por aqueles que “iam finalmente pôr ordem nas coisas”, chegando a solicitar e obter um encontro com o líder fascista Benito Mussolini. No entanto o artista, na verdade apolítico, morreu antes que esse contato se aprofundasse – talvez para a sorte da posteridade.

O músico e as mulheres, o drama na vida real

Frágeis, porém apaixonadas e decididas: assim são as famosas heroínas puccinianas, Cio-Cio-Sun, Tosca, Mimi. Quanto aos personagens masculinos, o quadro não é tão claro assim, entre tenores sedutores, porém nem sempre confiáveis – Rodolfo, Calaf, Cavaradossi – e barítonos descontrolados – Michele – ou completos vilões – Scarpia. Seria o criador se projetando em suas criaturas?

“Puccini era certamente um homem atraente”, comenta Jacobshagen. As fotos mostram, de fato, um elegante membro da aristocracia toscana, sempre bem-vestido, bigodes e cabeleira impecáveis.

A contemporânea Alma Mahler-Werfel chegou a descrevê-lo como “uma das pessoas mais bonitas” que já tinha visto, um Don Juan, um “tipo gentleman inglês com sangue romântico”. A viúva do compositor Gustav Mahler (entre outros), ela própria uma notória femme fatale da época, devia bem saber do que falava.

Completando o quadro, Giacomo Puccini era um caçador apaixonado e entusiasta da tecnologia – interesse este que satisfazia com automóveis e lanchas a motor sempre novos, além de outras maravilhas do progresso, como um sistema de irrigação para o jardim de sua vila em Torre del Lago.

A vida amorosa desse gênio da ópera de forte sex appeal foi intensa e variada – sem grande consideração pelas mulheres envolvidas. Só após 20 anos de convivência informal e por pressão de sua família, ele se casou com seu “principal amor”, Elvira, mãe de seu único filho, Antonio. Mas numerosos casos e escapadas amorosas lançaram uma sombra sobre essa relação, mais ainda depois do matrimônio.

“Por tempo demais fizeste de mim tua vítima, sempre pisoteaste os meus sentimentos bons e amorosos para contigo, ofendendo-me sempre no meu afeto de mulher e de amante apaixonada, que eu sempre fui”, escrevia a esposa em 1909, quando ambos pareciam prestes a se separar – o que não chegou a se concretizar.

“A relação de Puccini com os temas família e parceria se mostra um tanto complexa”, diagnostica Arnold Jacobshagen. Para além da vida privada digna de Hollywood, contudo, o italiano deixou, com sua arte, um importante legado: sua atualidade para além do palco seria uma prova disso. O biógrafo considera Madama Butterfly, por exemplo, “um grito de protesto contra a exploração sexual e o colonialismo”.

Também a Tosca e, acima de tudo, Turandot – que ele deixou inacabada – devem ser entendidas como um apelo contra a tirania e a arbitrariedade – mais atuais do que nunca em tempos de Donald Trump e Vladimir Putin, reforça o musicólogo alemão. Assim, a maestria de Giacomo Puccini em expor impiedosamente os pontos nevrálgicos da existência humana também conteria uma dimensão política – e atemporal.