23/07/2018 - 8:54
Embora em nada se pareça a um coração humano, a peça de metal com mangueira que a cardiologista Juliana Giorgi segura na mão direita (foto ao lado) é o mais moderno “coração artificial” que existe – o HeartMate3 Left Ventricular Assist System (HM3), da empresa americana de cuidados com a saúde Abbott. O primeiro implante desse dispositivo no Brasil ocorreu em março, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, pelas mãos do cirurgião Fábio Jatene e sob a supervisão do holandês Jaap Lahpor, consultor da Abbott. Juliana fez todo o acompanhamento clínico do paciente de 72 anos que recebeu o novo modelo. Ele está se recuperando muito bem.
Apesar de serem mais conhecidos como “corações artificiais”, equipamentos como esses não substituem o órgão por completo. Mas podem ser a solução temporária ou definitiva para pacientes com insuficiência cardíaca avançada, quando tratamentos com remédios já não dão mais resultado. Esses “corações de aço” dão assistência ao ventrículo esquerdo, que garante o bombeamento adequado do sangue oxigenado para todo o corpo. Eles têm grande potencial para tirar muitos pacientes da lista de espera por um transplante de coração ou, pelo menos, para lhes dar condições de aguardar a chamada.
Se indústria, governo e planos de saúde colaborarem, os implantes podem ficar mais acessíveis
Isso porque, mesmo com o transplante de órgãos bem estruturado no país, os doadores ainda são escassos e as filas, longas. A espera por um coração leva de 45 dias a 3 anos. Mas a insuficiência cardíaca avançada compromete muito a qualidade de vida do doente. “Chegam a sobreviver um ano, em péssimas condições, passando meses internados, dependentes de balão de oxigênio e muita medicação”, diz Juliana. Os corações artificiais são, ainda, a única saída para quem nem na fila pode entrar devido a contraindicações, como diabetes grave, HIV positivo, imunodepressão, câncer ou idade superior a 65 anos. Além de ser opção para quem, por crenças pessoais ou religiosas, não aceita receber um órgão de outra pessoa.
“Mas esse recurso ainda é bem pouco utilizado no Brasil. Há, atualmente, apenas cerca de 50 brasileiros implantados”, lamenta Juliana. O maior entrave está no alto custo de cada aparelho (cerca de R$ 700 mil). Mas ela também aponta uma falta de conhecimento de parte dos colegas. Embora já sejam reconhecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela Associação Nacional de Saúde (ANS), esses aparelhos ainda são vistos como experimentais por muitos profissionais da área.
“No Brasil, a falta de financiamento do sistema público de saúde e de muitos convênios causa uma limitação enorme a esses dispositivos mais sofisticados”, afirma Noedir Stolf, cirurgião cardíaco, responsável por transplantes cardíacos do Instituto do Coração (InCor) e membro fundador da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Devido aos custos e à cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS), apenas dispositivos mais simples são usados. Mas eles só podem ajudar por alguns dias ou semanas, no caso dos balões intra-aórticos, ou até um mês, no caso das bombas centrífugas comuns.
Implante X Transplante
Para Stolf, quando os dispositivos de última geração são usados como “ponte” para os transplantes – algo muito comum nos Estados Unidos e na Europa –, o paciente chega à cirurgia em melhor estado e, portanto, tem um melhor resultado no transplante. Alguns abandonam a fila, adaptando-se tão bem ao aparelho que os escolhem como tratamento definitivo.
Juliana lembra ainda que a vida do transplantado não é um mar de rosas. “É preciso tomar o imunossupressor e remédios para controle de infecção. Além disso, existem a possibilidade de rejeição aguda e os casos de incompatibilidade”, diz.
O implante do aparelho, por sua vez, elimina essas questões. A única restrição do paciente é mergulhar, já que o controle e as baterias do produto ficam para o lado de fora do corpo e não podem ser imersos em água – somente banho de chuveiro é permitido. Em setembro de 2017, havia 389 pessoas na fila de espera por um coração, segundo o Ministério da Saúde. Todos os anos, de 50 a 60 doentes morrem na fila. Para reverter esse cenário, Juliana faz das tripas coração. O desejo de evitar mortes e a chegada do HeartMate3 (HM3) ao Brasil são seus grandes motores.
O novo aparelho, aprovado em agosto de 2017 pela agência reguladora americana FDA, possui um mecanismo de funcionamento revolucionário que oferece uma melhora expressiva na qualidade de vida do usuário. De acordo com um estudo comparativo entre HM3 e HM2, publicado em congresso nos EUA, em março, a tecnologia por bomba centrífuga de levitação magnética do HM3 garante um fluxo de sangue que reduz a quase zero os riscos de trombose e acidentes vasculares cerebrais (AVCs). O único concorrente com a mesma tecnologia, o HeartWare, da Medtronic, não é comercializado no Brasil.
Já o mecanismo de funcionamento do HM2 (o mesmo de outro modelo de mercado, o Incor, da Berlin Heart), que empurra o sangue de forma mecânica, chamado sistema de fluxo axial, apresentou índice de 17% de trombose e 19% de AVCs. Participaram do estudo 366 pacientes: 190 deles implantados com a terceira geração, que tiveram índice de sobrevida de 79,5%, enquanto os 176 implantados com a segunda geração chegaram a 60,2%.
Reviravolta
Para viabilizar um aumento expressivo de implantes de HM3, a médica está chamando todas as partes envolvidas para negociar: a indústria (que pode baixar sua margem de lucro), o governo (que precisa promover a saúde e pode reduzir impostos e taxas de importação) e as operadoras (que podem perder menos pacientes ao investir na cirurgia, em vez de ter gastos com internações recorrentes (que também têm custos altíssimos e muitas vezes não impedem a morte do cliente). Não é possível dizer se os valores são compatíveis, mas a perspectiva de morte é de fato substituída pela grande chance de vida longa, saudável e produtiva.
Juliana e outros quatro médicos estão em vias de lançar a ONG Viva com Vida. O patrocínio de empresas dos mais diversos ramos permitirá abrir e manter um site informativo para a sociedade e a comunidade médica, realizar eventos sociais para divulgação desse conhecimento e fornecer amostras grátis, entre outras ações. “Estamos atrás da Colômbia, do Cazaquistão, da Índia. Temos de avançar e podemos salvar muitas vidas com isso”, afirma a médica.
• O QUE É
Embora seja chamado de “coração artificial” para facilitar o entendimento da sua função, o HeartMate3 é na verdade um “dispositivo de assistência ventricular esquerda” – ou seja, ele não substitui o coração, mas o ajuda a bombear sangue adequadamente para o corpo.
• COMO FUNCIONA
O HeartMate3 Left Ventricular Assistent System assume a função que o ventrículo esquerdo já não consegue exercer nos pacientes com insuficiência cardíaca avançada. Ele garante o bombeamento do sangue para a aorta, que se inicia na base do ventrículo esquerdo e é a maior e principal artéria do corpo humano, responsável por distribuir sangue oxigenado do coração para todos os órgãos do organismo.
• COMO É IMPLANTADO
O aparelho é acoplado ao coração do paciente e fica conectado a um controle e a duas baterias externas por meio de um cabo que atravessa para o lado de fora do corpo na altura da barriga. Além de o equipamento ter dimensões bem menores do que o modelo anterior, o HM3 é implantado na altura do tórax, enquanto o modelo anterior exigia a abertura de um espaço no abdômen, onde ficava alojado. Esse mecanismo permitiu uma redução de até 4 horas no tempo de cirurgia.