03/02/2025 - 5:22
Em 2000, fenômeno Jörg Haider marcou primeira incorporação de extremistas de direita pela via eleitoral num governo da Europa desde a 2ª Guerra. Caso provocou alarme na UE e impactos que ainda são sentidos no bloco.No momento, a ultradireita europeia lidera ou participa de coalizões na Itália, Hungria, Croácia, República Tcheca, Eslováquia, Holanda, Finlândia e também exerce influência nos governos da Suécia e da França.
Mas nem sempre foi assim.
Há exatamente 25 anos, uma reviravolta histórica na Áustria alteraria o destino da ultradireita na Europa, após décadas de marginalização no pós-guerra.
E a reação da liderança da União Europeia (UE) à época também teria efeitos profundos na forma como Bruxelas escolheria lidar – ou não lidar – com governos que corroessem os valores do bloco.
O fenômeno Haider
“Deve a Europa temer esse homem?”, estampou a revista americana Newsweek na sua capa, em fevereiro de 2000, junto com uma foto do político de extrema-direita Jörg Haider, que à época liderava o Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ, na sigla em alemão) e havia conseguido formar uma aliança para integrar o governo austríaco.
Quatro meses antes, em 3 de outubro de 1999, o FPÖ havia surpreendido nas eleições legislativas ao terminar a disputa em segundo lugar, com 26,9% dos votos, levemente à frente do Partido Popular Austríaco (ÖVP), uma tradicional sigla conservadora.
Nas quatro décadas que precederam essa eleição, o ÖVP e o Partido Social-Democrata da Áustria (SPÖ) dominaram a política austríaca por meio de alianças ou se alternaram no poder. Nos anos 1990, essa dupla hegemonia começou a erodir com a ascensão do FPÖ.
Fundado em 1956 por um grupo de antigos nazistas – seu primeiro líder foi um ex-general da SS –, o FPÖ foi pouco relevante na política austríaca nas suas primeiras décadas.
Apesar do passado dos seus membros fundadores, a legenda inicialmente se apresentou como um partido moderado.
Na primeira metade dos anos 80, o FPÖ chegou a atuar como um parceiro minoritário na coalizão do chanceler Fred Sinowatz, do SPÖ. À época o FPÖ era comandado por uma corrente liberal e a incorporação foi considerada uma manobra política corriqueira.
Mas, em 1986, o FPÖ passou por uma transformação radical quando Jörg Haider, um político nascido em 1950 que tinha como base eleitoral a região rural da Caríntia – o menos populoso estado austríaco – se impôs como líder nacional da legenda.
Filho de um casal de antigos nazistas – seu pai havia se filiado ao braço austríaco do partido nazista em 1929 e sua mãe era ativa numa organização da juventude feminina do partido –, Haider acabaria levando o FPÖ para o caminho do populismo explícito, implementando um discurso antissistema e fazendo o combate à imigração e ao islã a principal bandeira.
“Ele transformou a xenofobia em uma poderosa arma política”, avaliou à época o diretor de uma agência de marketing de Viena.
O estilo provocativo de Haider incluía comentários em defesa de veteranos nazistas, elogios à política trabalhista do Terceiro Reich e falas que minimizavam os campos de concentração como meros “campos de punição”.
O crescente euroceticismo do FPÖ sob Haider também começou a parecer atraente para eleitores desconfiados com a crescente integração da Áustria na UE e a expansão do bloco para o leste que se anunciava no horizonte.
O discurso antissistema, por sua vez, mostrou apelo entre os austríacos cansados do revezamento entre o SPÖ e o ÖVP. Haider se especializou em denunciar o que chamava de “elites corruptas” do país. “Eles são contra Haider porque ele luta por você”, dizia um cartaz eleitoral do FPÖ.
Quando Haider tomou as rédeas do FPÖ em 1986, o partido amargava apenas 5% do eleitorado com sua plataforma liberal. Nos anos seguintes, passou por os dois dígitos. E aí veio a eleição de 1999.
Quebra de um tabu
Ao conquistar a segunda posição na eleição de 1999, o FPÖ mostrou que era possível expandir seu eleitorado com uma mensagem radical, num modelo que seria copiado por outras legendas europeias.
Após o fracasso das negociações entre os dois grandes partidos, os conservadores do ÖVP, que haviam ficado em terceiro lugar, decidiram abrir a porta para uma aliança com Haider.
Seria um momento de virada na política austríaca – e europeia.
Cinco anos antes, na vizinha Itália, o antigo Movimento Social Italiano (MIS), um partido de origens fascistas, havia conseguido entrar como parceiro de coalizão de Silvio Berlusconi. Mas, ao contrário do FPÖ, o MIS – que seria dissolvido pouco depois – caminhava à época para um rumo mais conservador e sua incorporação não soou alarmes na Europa. Já o FPÖ, pelo contrário, chegou ao governo quando caminhava para a radicalização e conquistando a segunda maior fatia de votos.
Pela lógica dos resultados, Haider, cujo partido havia conquistado mais votos que o ÖVP, deveria ser o chanceler (chefe de governo) da coalizão. Mas isso era demais até para os conservadores. No final, Haider concordou em ceder o posto para o líder do ÖVP, Wolfgang Schüssel. O ultradireitista também declinou fazer parte do gabinete e, mais tarde, cedeu a presidência do seu partido para uma testa-de-ferro.
Mas críticos de Haider afirmaram que as mudanças eram meramente cosméticas e que ele continuava a comandar o FPÖ nas sombras. Já Schüssel foi acusado de atuar em benefício próprio ao romper o “cordão sanitário”, prevalente na maioria dos países da UE na época, que estabelecia o princípio de recusa dos partidos tradicionais em cooperar com a extrema direita.
Escândalo e reação da UE
Ainda assim, os dois campos prosseguiram na aliança. O arranjo provocou imediatamente choque na UE e além. Por algum tempo, Haider se tornou o principal rosto da extrema direita europeia, tomando o lugar ocupado por anos pelo francês Jean-Marie Le Pen, que nunca havia chegado tão longe eleitoralmente como sua contraparte austríaca.
Diante da aliança entre o ÖVP e o FPÖ, Israel retirou seu embaixador de Viena e declarou Haider persona non grata. Representantes judaicos dos EUA e da Europa também expressaram preocupação com o novo governo. Leah Rabin, viúva do premiê israelense, Yitzhak Rabin, afirmou que a ascensão do FPÖ sinalizava que, ao contrário da vizinha Alemanha, “a Áustria não parecia ter enfrentado seu passado”.
Jornais estrangeiros logo passaram a apontar para o passado sombrio da Áustria durante a fusão do país com a Alemanha nazista entre 1938 e 1945 e lembraram que Adolf Hitler era um nativo da Áustria. “Para a maioria dos austríacos, o passado nunca aconteceu. Eles construíram uma história imaginária na qual os austríacos foram vítimas de uma invasão alemã nazista em vez de capangas voluntários de Hitler”, apontou um artigo do International Herald Tribune.
Líderes da França e da Bélgica, que enfrentavam blocos barulhentos da extrema direita em seus países, também condenaram publicamente a formação da coalizão.
Mas a reação mais chamativa foi orquestrada em conjunto por 14 países da União Europeia – que à época contava com 15 países –, que trataram o FPÖ como um bacilo. “Precisamos vacinar a Europa contra os perigos de uma doença que está ameaçando se espalhar”, sintetizou o então primeiro-ministro de esquerda da Itália, Massimo d’Alema.
À época, a presidência rotativa da UE era ocupada por Portugal. O então premiê português, António Guterres – hoje secretário-geral da ONU – anunciou a imposição, fora dos mecanismos da UE, de um pacote de sanções informais pelos 14 países contra a Áustria, que incluía o cancelamento de reuniões bilaterais com membros do governo austríaco.
Foi a primeira vez que o bloco – ainda que informalmente – deu um passo nesse sentido. À época, a UE até contava com um mecanismo – o Artigo 7 – para impor sanções a países-membros que seguissem um rumo antidemocrático, mas ele não podia ser acionado de maneira escalonada, portanto, decidiu-se adotar sanções informais.
Ainda assim, o novo governo liderado por Schüssel e o ÖVP em aliança com o FPÖ tomou posse em 4 de fevereiro. Os ultradireitistas garantiram seis dos 12 postos ministeriais no governo.
Empobrecidos países do leste europeu, ansiosos para serem absorvidos na UE, também reduziram suas relações diplomáticas com Viena – com uma exceção: a Hungria, comandada à época por Viktor Orbán, em seu primeiro mandato.
Reviravolta
Dentro da Áustria, as sanções em boa parte tiveram o efeito oposto, provocando críticas até mesmo entre adversários de Haider.
Em 1986, o chamado caso Waldheim já havia tido esse efeito, quando jornais estrangeiros e organizações judaicas sediadas nos EUA apontaram a suspeita que o então candidato presidencial austríaco Kurt Waldheim, do ÖVP, teria omitido aspectos da sua atuação como oficial nas Forças Armadas nazistas durante a guerra. À época, parte do eleitorado reagiu negativamente às acusações vindas do exterior e Waldheim foi eleito.
Mas dúvidas sobre a forma como os 14 países da UE estavam agindo com Haider começaram a surgir dentro do próprio bloco.
Políticos de países menores, especialmente da Dinamarca, questionaram se as sanções informais não caracterizavam uma espécie de “bulliyng” contra um membro do bloco. Políticos da Irlanda e do Reino Unido (à época ainda membro da UE) também alertaram que era melhor esperar para ver se Haider iria efetivamente radicalizar o governo.
“Os críticos alertam que as sanções da UE violam o direito fundamental de cada democracia de decidir livremente em quais partidos seus cidadãos podem votar e qual desses partidos deve formar o governo”, alertou o semanário alemão Die Zeit.
Em junho de 2000, após meses de impasse, a presidência portuguesa da UE decidiu solicitar ajuda ao Conselho da Europa. Três figuras foram nomeadas para avaliar o caso.
Apelidado de “conselho dos três sábios” recomendou em setembro que as sanções fossem suspensas incondicionalmente, argumentando que elas estavam sendo “contraprodutivas”. Eles ainda recomendaram que a UE reformasse o Artigo 7 para incluir um mecanismo escalonado de pressão.
As sanções foram suspensas quatro dias depois e Haider se gabou que as medidas contra a Áustria haviam “terminado como um fracasso total”.
Outros fatores também parecem ter pesado. No verão de 2000, a Dinamarca convocou um referendo para que a população votasse se o país deveria adotar o euro como moeda. Políticos dinamarqueses contrários exploraram a narrativa de “bulliyng” contra a Áustria. No final, 53% votaram contra a adoção do euro.
Governo tumultuado e morte de Haider
Apesar do fim das sanções, o governo ÖVP-FPÖ seria tumultuado. Em 2002, uma disputa interna no FPÖ provocou um racha na legenda, levando o chanceler Schüssel a convocar novas eleições. Desta vez, os ultradireitistas de Haider receberam apenas 10,1% dos votos – quase 17 pontos a menos do que em 1999 –, mas continuaram na coalizão.
Em 2005, foi a vez de Haider, novamente insatisfeito com outros altos-membros do partido, dividir a legenda ao decidir formar uma nova agremiação, a Aliança pelo Futuro da Áustria (BZÖ).
Nos anos seguintes, o BZÖ acabaria rumando para a irrelevância. Mas Haider não seria testemunha disso. Em outubro de 2008, poucos dias após novas eleições legislativas, Haider, então com 58 anos, morreu ao perder o controle do seu automóvel na Caríntia. O local do acidente se tornaria um ponto de peregrinação para admiradores.
Trajetória do FPÖ pós-Haider
Se o BZÖ caminhou para a irrelevância, o mesmo não aconteceu com o FPÖ, que mostrou que poderia sobreviver e prosperar sem Haider – ainda que o caminho tivesse percalços.
Nos anos 2010, o partido começou a voltar a um patamar acima dos 20%. Quando veio a eleição de 2017, o FPÖ conseguiu 26% dos votos. A essa altura, a bandeira anti-imigração do partido já havia se tornado mainstream, e passou a ser compartilhada até pelo ÖVP, à época sob a liderança do jovem Sebastian Kurz, vencedor daquela eleição.
Assim como seu antecessor Schüssel havia feito 17 anos antes, Kurz decidiu formar uma aliança com o FPÖ, marcando o retorno da ultradireita ao poder – ainda que compartilhado.
Mas seria uma experiência curta. Dois anos depois, no escândalo que ficou conhecido como “caso Ibiza”, a imprensa revelou uma gravação de 2017 que mostrava o então líder do FPÖ Heinz-Christian Strache negociando contratos governamentais com uma suposta magnata russa em troca de apoio.
O caso levou à queda do governo Kurz e novas eleições em 2019. No curto prazo o FPÖ foi punido nas urnas, amargando 16% dos votos.
Mas, nos anos seguintes, o partido, agora na oposição e sob a nova liderança de Herbert Kickl – um ex-redator de discursos de Haider – começou a recuperar terreno, especialmente ao explorar a insatisfação de muitos austríacos com a forma que o governo lidou com a pandemia de covid-19 – que incluiu uma controversa e depois extinta vacinação obrigatória. O partido também viu sua oposição à imigração ressoar mais após a polícia desbaratar planos de radicais islâmicos para atacar um show da cantora Taylor Swift em Viena.
Finalmente, na eleição do final de setembro de 2024, o FPÖ se tornou a legenda mais votada, ao conquistar 29,2% dos votos, quase três pontos à frente do ÖVP. Foi a primeira vez desde a Segunda Guerra que a ultradireita liderou a votação no país.
Caso Haider teve impacto negativo na UE
Em 2003, após o caso Haider, a UE passou a contar com um mecanismo escalonado em três fases dentro do Artigo 7 para agir contra países-membros que adotassem um rumo potencialmente antidemocrático – como havia sido sugerido pelos “três sábios”.
No entanto, o artigo 7 nunca foi aplicado até hoje em sua totalidade.
Segundo analistas, a sensação de que a pressão sobre a Áustria em 2000 foi exagerada teve um efeito negativo, já que a UE acabaria por demorar a agir quando governos na Polônia e Hungria começaram a corroer instituições.
Em 2010, Viktor Orbán voltou ao poder na Hungria – agora na UE – e rapidamente passou a ser acusado de enfraquecer as instituições. O mesmo ocorreu na Polônia entre 2015 e 2023 sob o Partido Lei e Justiça (PiS).
A liderança da UE demoraria oito anos para invocar o Artigo 7 contra a Hungria – e o mecanismo continua parado na primeira fase desde 2018. No caso da Polônia, o artigo foi invocado em 2017, mas também não havia avançado quando o PiS finalmente deixou o governo em 2023.
“O problema austríaco não foi o fato de a UE ter agido, mas sim ter agido cedo demais. (…) O caso austríaco claramente assombrou a Comissão Europeia, que poderia ter tomado medidas eficazes para impedir o retrocesso do Estado de Direito na Hungria, mas não o fez”, escreveram os cientistas políticos Laurent Pech e Kim Lane Scheppele num artigo de 2018 sobre o impacto do caso Haider.
Nos anos seguintes ao caso Haider, a cúpula do bloco também passaria a evitar condenar tão sistematicamente a formação de governos com a ultradireita.
Isso pôde ser observado quando a italiana Giorgia Meloni ascendeu ao posto de primeira-ministra em 2022. Líder do Irmãos da Itália, que tem raízes em movimentos neofascistas, Meloni usou em sua campanha o slogan “A Itália em primeiro lugar”, reminiscente da campanha de Haider em 1999. Após a sua chegada ao poder, outros membros da UE optaram por se aproximar da italiana.
No final de setembro de 2024, quando o FPÖ terminou a disputa eleitoral na Áustria em primeiro lugar, um porta-voz da Comissão Europeia se limitou a afirmar: “Nós não comentamos eleições”.
Não poderia ter sido mais contrastante em relação à reação que a ascensão de Haider provocou em 2000.