Em entrevista à DW, advogado britânico Thomas Goodhead avalia julgamento do caso Mariana em Londres. Ele compara reações contra seu escritório e o júri no exterior às campanhas das indústrias do tabaco e farmacêutica.O ano 2025 é um marco para a catástrofe de Mariana. Além de se completar uma década do rompimento da barragem de Fundão, é também quando a Justiça britânica vai decidir se a mineradora BHP Billiton tem responsabilidade no ocorrido.

A resposta está mais perto de chegar: iniciado em outubro de 2024, o julgamento internacional entra na fase final em março e poderá se converter numa indenização de R$ 230 bilhões. A decisão, entretanto, virá em meio a polêmicas.

Além dos valores bilionários, está em jogo uma disputa de narrativas entre o escritório de advocacia Pogust Goodhead, representante das vítimas brasileiras, e integrantes do setor da mineração nacional, como o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram).

As mineradoras recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir que os municípios entrassem com ações no exterior, o que resultou na proibição de que eles pagassem honorários advocatícios a bancas internacionais. Há ainda acusações de interesses em ferir a soberania nacional e de conduta antiética na captação de clientes.

O governo brasileiro também assinou um acordo de R$ 132 bilhões com as empresas Samarco, Valee BHP, o que balançou a adesão dos municípios à ação no Reino Unido. As cidades têm até 6 de março para dizer se aceitam a proposta nacional, o que as impede de permanecerem em pleitos no exterior. Locais centrais da tragédia, como Mariana, ainda não decidiram o que fazer.

Em entrevista exclusiva à DW, o advogado galês responsável por levar o caso ao Reino Unido, Thomas Goodhead, avalia as 13 semanas de julgamento. Em meio ao fogo cruzado, ele defende a ação no exterior, acusa as mineradoras de agirem de maneira coordenada para minar o julgamento inglês e se diz confiante numa vitória.

Seu trunfo estaria na própria legislação ambiental brasileira. “É irônico que uma empresa australiana, a maior empresa de mineração do mundo, que retirou dezenas de bilhões de dólares do Brasil, lucros remetidos para fora, grite sobre soberania nacional. Que use mecanismos com a ADPF no STF para não ser julgada no estrangeiro. É um ultraje.”

Para Goodhead, há uma tentativa de persuadir a Justiça, o governo e as vítimas brasileiras. “Uma empresa como a BHP usa o seu poder econômico para tentar intimidar qualquer pessoa que se meta no seu caminho.” O julgamento será retomado, para alegações finais, entre 5 e 13 de março, e uma sentença é esperada até meados do ano.

DW Brasil: O julgamento está entrando numa fase decisiva em março de 2025. Com base no que aconteceu até agora, quais as chances reais de as vítimas de Mariana e do escritório ganharem essa ação?

Thomas Goodhead: Estamos extremamente confiantes em obter sucesso neste julgamento, por duas razões. A primeira é o que chamamos de responsabilidade objetiva. O que o julgamento demonstrou de diferentes formas, com depoimentos de atuais e antigos funcionários da BHP e por meio da análise de documentos, é que a BHP foi claramente responsável pelas operações da Samarco. Ela estava envolvida na tomada de decisões financeiras, de expansão da produção, na governança, na avaliação do risco. Então, toda vez que alega que foi a Samarco, e não ela, todas as provas documentais do processo, tanto as factuais quanto em depoimento, apontam o contrário. A BHP esteve muito envolvida, e acreditamos que a corte viu isso.

A segunda razão não tem a ver apenas com a responsabilidade estrita, mas também com a responsabilidade subjetiva, princípio que diz que, além de estarem envolvidos, eles também foram efetivamente causadores ou culpados pelo colapso – pelo que fizeram e não fizeram. Ouvimos provas de que a BHP tinha conhecimento, por exemplo, das fissuras da barragem em 2014, das falhas na realização das avaliações de estabilidade, de que houve falhas na realização de análises do risco de liquefação. O próprio projetista da barragem tinha feito recomendações em relação a fatores de segurança que não foram seguidos. E a BHP estava ciente de tudo isso.

Portanto eles pagam porque são poluidores, mas também por causa da culpa e porque tiveram a oportunidade de evitar o colapso ou minimizar o risco e não o fizeram. Temos uma juíza que é extremamente experiente e ouviu atentamente esses argumentos durante meses. Por isso, estamos extremamente otimistas quanto a um resultado favorável.

Vocês vão basear os argumentos finais nesses dois pontos ou haverá algo novo a ser trazido que pode impactar a decisão final?

Para além das questões de saber se a BHP é ou não responsável, também temos a questão da prescrição. A BHP argumenta que centenas de milhares de participantes do processo não poderiam apresentar suas demandas porque não o fizeram até três anos após o desastre. E isso é totalmente contrário aos elementos básicos da lei brasileira. A empresa tentou impedir pessoas com deficiência, ou abaixo de certa idade, de trazer seu caso a Londres. Por isso nós dizemos que ela tem feito tudo para impedir a apresentação das demandas.

Há também questões sobre se quem recebeu indenizações muito pequenas no passado teria ou não renunciado aos seus direitos devido a uma espécie de acordo feito há anos, sem saber necessariamente os impactos do colapso da barragem. E há, também, a questão de saber se os municípios, incluindo Mariana, podem ou não apresentar sua demanda na Inglaterra. A BHP, juntamente com a Vale e outras grandes empresas mineiras envolvidas, com o Ibram, tentam usar táticas dissimuladas para impedir os municípios de buscarem reparação na Inglaterra. Essas questões serão determinadas aqui também.

Como vocês vêm negociando com os representantes dos municípios? Qual o impacto que a desistência de alguns municípios poderá ter no futuro do julgamento na Inglaterra?

Eu costumo dizer que houve dois crimes em Mariana. O primeiro foi associado ao colapso da barragem, e o segundo é a forma como a BHP e a Vale trataram as vítimas, incluindo os municípios, depois desse colapso. Elas prolongam suas perdas, sofrimento e miséria. A Fundação Renova, essa fundação falsa que a BHP e a Vale criaram, estava tentando pagar aos municípios algo em torno de R$ 2 milhões a R$ 3 milhões, valores ridiculamente baixos. Naquela época, os prefeitos e municípios tiveram que aceitar, pois não tinham alternativa. Seis anos depois, após o litígio na Inglaterra, de repente, na última semana de outubro, eles receberam uma oferta de R$ 6 bilhões.

As empresas, mais uma vez, agiram cinicamente, porque quando podiam ter dito “vamos negociar de forma justa com os municípios, vamos reconhecer as perdas, deixá-los participar”, o que elas fazem? Um acordo no Brasil sem os municípios estarem envolvidos. Elas também utilizam ilegitimamente o Ibram – uma organização de fachada para as empresas mineiras no Brasil – para tentar criar o que dizemos ser um processo abusivo no STF. Portanto, tudo o que estas empresas fazem em relação aos municípios tem sido para atrasar, para negar. Tem sido apenas a perpetuação de um crime que está em curso.

Neste momento, quatro ou cinco municípios decidiram que não têm outra escolha senão aderir a esse acordo no Brasil, mas todos os prefeitos com quem falo dizem que é um acordo ruim, que é pago ao longo de 20 anos, que não foi calculado com base nas perdas reais. Mas alguns desses municípios estão em circunstâncias fiscais muito apertadas, estão sob pressão, especialmente no fim do ano, quando precisavam pagar os décimos-terceiros salários. Mas não há impacto na causa inglesa, pois apenas um número pequeno de cidades assinou o acordo. Há ainda 620 mil pessoas físicas, mais de 40 municípios e centenas de empresas na ação, além de 20 mil indígenas. O que eu quero é continuar a lutar para que os municípios que representamos recebam os valores mais elevados de indenização que puderem.

Como espera que o governo brasileiro reaja, já que muitas dessas empresas estrangeiras têm operações no país?

Não tenho uma resposta direta para isso. Conheci muitas pessoas do governo brasileiro – tanto do Federal quanto dos níveis estadual e municipal – empenhadas em proteger o meio ambiente. Gente que está dando o melhor de si para proteger o direito das vítimas, e fez um trabalho árduo para tentar responsabilizar essas empresas. Mas governo é governo, e política pública é política pública. Há sempre trade-off, e claro, no Brasil, como um país que depende tanto de exportação de minerais e minério de ferro, em particular, a realidade econômica é que essas empresas têm uma enorme influência na política.

Mas descobri também que as pessoas são solidárias com o que estamos tentando fazer, que veem isso como uma tentativa de realmente alcançar justiça. Ouvi o ministro [Luís Roberto] Barroso dizer que, quando o acordo foi homologado, houve um reconhecimento do impacto das ações judiciais no estrangeiro, em termos de contribuição, para esse acordo final no Brasil. Gosto de sentir que pelo menos ajudamos a contribuir de alguma forma para a obtenção de alguma justiça em nome das vítimas, quer seja no Brasil ou no estrangeiro.

No Brasil, o seu escritório tem sido acusado de ser antiético na forma como atraiu clientes, ou de prejudicar a soberania nacional. Como vocês respondem a essas acusações? Elas podem comprometer o julgamento no Reino Unido?

Não foi o meu escritório de advocacia que matou 19 pessoas [Mariana], nem que matamos 267 pessoas [Brumadinho], não fomos nós que cometemos os maiores desastres ambientais da história do Brasil. Esses são ataques financiados e coordenados pelas empresas. Estão gastando milhões de dólares em campanhas de relações públicas para atacar os advogados, ir atrás dos clientes que represento, quando poderiam estar fazendo o certo: pagando pelo dano que causaram. É uma campanha para tentar distrair do fato de que foram elas as responsáveis por estes terríveis crimes ambientais, que arruinaram milhões de vidas. A indústria do tabaco fez isso nos Estados Unidos a quem apresentou queixa contra ela; as farmacêuticas fizeram isso contra advogados e quem procurava justiça por vício em opiáceos.

O que está acontecendo agora é que escritórios de advocacia de todo o mundo estão enfrentando grandes empresas que contribuíram para as mudanças climáticas. E essa é a forma como elas se comportam diante do crime que cometeram, atacando os advogados. Isso, para mim, é um sinal de fraqueza. E, para mim, mostra também que estamos fazendo bem o nosso trabalho.

Não só no Brasil, mas no Reino Unido, saíram notícias questionando se o escritório teria como se manter financeiramente até o pagamento das indenizações, em caso de vitória no Reino Unido. A forma como vocês se financiam tem sido questionada. O que tem a dizer sobre isso?

Mais uma vez, são as empresas forçando, seja para dizer que estamos cobrando demais das vítimas, ou que não temos verba suficiente para chegar ao fim do caso. É um disparate para assustar as pessoas: eles se aproveitam da fragilidade e do cansaço delas. Mas não vamos desistir. Eu tenho todos os recursos, sejam financeiros, sejam advogados e analistas, gente muito talentosa, para litigar esse caso até o fim. Pessoalmente, estou envolvido há mais de sete anos, é a missão da minha vida levar a BHP à Justiça pelo que fez às vítimas de Mariana.

Não é apenas no caso de Mariana que estamos envolvidos. Estamos também num caso contra a Braskem, contra a Repsol, empresas muito grandes. Temos um histórico de casos resolvidos com sucesso e não vamos parar até conseguir justiça em nome dos afetados pelo colapso da barragem [de Fundão].

Qual é a diferença entre o processo judicial no Reino Unido e o acordo feito no Brasil em termos de resultado? O que o julgamento em Londres pode trazer de diferente para as vítimas?

No Brasil, as vítimas não obtiveram nada que tenha sido avaliado por um juiz. Exceto em casos individuais, elas não tiveram a chance de comprovar suas perdas. O acordo feito foi negociado pelas autoridades públicas e as empresas, sem envolvimento das vítimas. São indenizações que estão muito longe de ser perfeitas.

No Brasil, as vítimas têm que escolher entre receber um valor, em geral, muito inferior ao que receberiam se fossem a um tribunal ou esperar 20, 30 anos, o tempo que um litígio pode demorar, para receber o valor. O sistema inglês permite que muitos apresentem suas demandas em conjunto. Nesse caso, já existe um julgamento agendado para o próximo ano, caso não haja acordo, para determinar o valor das indenizações. E as expectativas são de que as vítimas conseguirão provar suas perdas, e que as indenizações serão muito mais altas do que as oferecidas no acordo no Brasil.

Como o resultado desse julgamento pode ter impacto nos outros casos em que seu escritório estão envolvidos?

Cada caso é individual e tem obviamente suas próprias circunstâncias. Brumadinho, Braskem e Norsk Hydro são muito diferentes de Mariana. Mas um resultado positivo no caso de Mariana – quando e se conseguirmos uma sentença contra a BHP – será extremamente favorável para os outros casos, pois é uma prestação de contas. Mostrará que uma empresa, a maior empresa mineira do mundo, foi responsabilizada como poluidora por um tribunal britânico, aplicando a lei brasileira. E tenho certeza de que os tribunais na Alemanha, na Holanda e em outras partes do mundo, que estão analisando casos que usam a lei ambiental brasileira, terão uma opinião positiva sobre qualquer sentença dada na Inglaterra.

Por que invocar a lei ambiental brasileira no exterior? Se ela é eficiente lá fora, por que não é suficiente para obter a justiça no Brasil?

Este é um caso único em muitos aspectos, devido à sua dimensão e escala, mas também porque acreditamos ser a primeira vez que a lei ambiental brasileira foi usada contra uma empresa estrangeira num tribunal estrangeiro. E essa é a nossa resposta à questão da soberania.

A lei ambiental brasileira é uma das mais fortes do mundo. É extraordinariamente progressista. É muito protetora das vítimas e das comunidades. A Constituição do Brasil protege explicitamente os direitos e a importância do meio ambiente. Mas, às vezes, pode haver uma diferença entre o que diz a lei e a sua aplicação efetiva. E há preocupações bem conhecidas em relação ao tempo que os processos judiciais podem levar, e sobre o poder que as empresas têm, por poderem contratarem os advogados mais caros ou recorrer inúmeras vezes.

A Samarco foi multada centenas de vezes por violações de licenças ambientais ou em relação ao colapso da barragem de Fundão. A Vale foi multada centenas de vezes. A Petrobras tem centenas de multas, mas muitas vezes simplesmente não as paga, pois recorre por décadas e décadas a fio.

Para você, o que seria um fim justo para essa tragédia?

O mais importante é que isso não volte a acontecer. Penso que o fim tem de ser realmente aprender com o que aconteceu, e que as empresas deem mais importância à segurança do que ao lucro. Um final justo será acompanhado de novos compromissos de segurança e de acordos verdadeiros, com a participação de quem foi afetado. Mas no momento não se vislumbra nada disso: a atitude das empresas mostra que, por ora, o único final é aquele em que a juíza decidirá quanto essas empresas terão que pagar.