Brasil foi único país sul-americano a enviar tropas combater os nazifascistas. Há 80 anos, histórica batalha de Monte Castello assegurou um lugar na política internacional – mas também propiciou o golpe militar de 1964.A batalha começou com o raiar do sol, e a conquista só se tornou completa na madrugada seguinte. Naquele 21 de fevereiro de 1944, os Aliados, representados pelos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB), tomaram o Monte Castello, perto de Bolonha, na Itália, então dominado pelas forças do Eixo, sob o comando alemão.

De 24 de novembro a 21 de fevereiro, foram empreendidos seis ataques contra as forças nazifascistas ali baseadas. No entendimento de analistas, o que sacramentou a vitória foi a intensa artilharia de barragem comandada pelo general Cordeiro de Farias contra o cume do monte, entre as 16h e 17h, o que permitiu a movimentação das tropas brasileiras avançando sobre as alemãs.

As tropas da FEB estavam sob comando geral do general Mascarenhas de Moraes, que na véspera da conquista de Monte Castello determinou toda a tática da batalha. Nos estertores das Segunda Guerra Mundial, o episódio consolidou a participação brasileira no conflito. De setembro de 1944 a maio de 1945, quase 26 mil militares brasileiros lutaram no front sob o comando dos Estados Unidos. O Brasil foi a única nação sul-americana a mandar contingentes para atuar na guerra.

Linha Gótica

“A conquista de Monte Castello constitui parte importante da vitória dos Aliados contra o Eixo, porque resultou no início do rompimento da ‘Linha Gótica’, uma das últimas defesas nazifascistas na Europa”, contextualiza a historiadora Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professora no Serviço Social da Indústria (Sesi).

A alusão é a uma barreira formada pelos nazistas na altura dos Apeninos, com a finalidade de impedir o avanço dos Aliados até a Alemanha. Assim, o conjunto de batalhas ocorridas no norte italiano “não é apenas parte da história dos pracinhas”, ressalta a professora, porque “constitui um marco da Segunda Guerra, contribuindo para seu fim”.

“O peso de eventos como esse varia conforme o referencial escolhido”, pondera o tenente-coronel do Exército Durval Lourenço Pereira, historiador militar e autor de Operação Brasil: O ataque alemão que mudou o rumo da Segunda Guerra Mundial e Guerreiros da província: A jornada épica da Força Expedicionária Brasileira, entre outros.

Ele lembra que a vitória de Monte Castello “é muito importante para o Exército brasileiro”, mas, “num quadro mais amplo, da história da Segunda Guerra como um todo, decai de importância”. Por outro lado “sob o prisma da história militar, trata-se de um acontecimento ímpar: jamais uma nação sul-americana derrotara uma potência europeia no campo de batalha”.

A especialista relações internacionais e socióloga Carolina Pavese, professora no Instituto Mauá de Tecnologia (IMT) concorda que “no panorama geral da guerra”, a batalha “tem um peso muito secundário”. “Mas para o Exército brasileiro foi o episódio mais importante na história moderna, marcando um divisor de águas, rompendo o isolamento, antes restrito a atuações no continente americano.”

O Brasil na Segunda Guerra Mundial

Oficialmente, o Brasil entrou na Segunda Guerra em agosto de 1942. O governo Getúlio Vargas, no modelo do regime do Estado Novo, nutria certa simpatia pelo fascismo italiano. Nos primeiros anos do conflito, a política externa brasileira foi hesitante. Ideologias à parte, ambos os lados da contenda eram economicamente interessantes: Estados Unidos e Alemanha se posicionavam, respectivamente, como primeiro e segundo principais parceiros comerciais do país.

Mas uma série de ataques de submarinos a navios na costa brasileira e uma pressão cada vez maior dos americanos por uma decisão fez Vargas decidir entrar na guerra. Segundo o cientista político Ricardo Antônio Silva Seitenfus, em seu livro O Brasil vai à guerra, 21 submarinos alemães e dois italianos torpedearam e afundaram 36 navios mercantes brasileiros, causando 1.074 mortes.

Assim, a inicial “neutralidade oportunista” de Vargas deu lugar a uma adesão. Como explica o músico João Barone, pesquisador da participação brasileira no conflito e autor de livros como A minha Segunda Guerra, o país fornecia matérias-primas importantes para os Estados Unidos e tinha uma posição estratégica – que mais tarde seria utilizada como base americana, no nordeste do país.

Em janeiro de 1943, Vargas se reuniu com o presidente americano Franklin Roosevelt, em Natal, para discutir os rumos da parceria dos países no conflito. “O Brasil não queria seguir sendo apenas um coadjuvante. Queria entrar em ação para poder ficar junto das nações naquele contexto.”

Era um contexto geopolítico em que já começava a se desenhar um futuro pós-guerra, com organismos como a Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse sentido, era importante garantir lugar na mesa. “Ter uma participação militar efetiva era algo estratégico”, completa Barone.

Os pracinhas: uma “expedição de provincianos”

Mas havia um problema inicial: quem mandar para a guerra? Naquela época, as Forças Armadas do Brasil contavam com cerca de 70 mil homens. Enviá-los para o front significaria ficar muito desguarnecido, fato especialmente grave num contexto de guerra mundial. A solução veio de uma canetada presidencial e a convocação compulsória dos assim chamados reservistas, os homens com mais de 18 anos que haviam prestado o serviço militar obrigatório.

Em 9 de agosto de 1943 foi criada a Força Expedicionária Brasileira. No total, 25,9 mil homens participaram da divisão. Como lembra a historiadora Reis, no início o programa de alistamento era voluntário. Como não houve sucesso, o governo “recorreu a uma convocação compulsória”. Na maioria, os que integraram a FEB eram “soldados de baixa patente e civis”.

“O soldado brasileiro médio era o ‘João da Silva’, alguém que foi convocado obrigatoriamente para cumprir com essa necessidade de compor uma força militar que pudesse entrar em operação em um cenário de guerra”, explica Barone. Ele conta que foi preciso fazer uma “peneira muito grande” para selecionar os mais aptos, num contexto de pobreza e subnutrição da população. “Colocaram ali o melhor que fosse do homem brasileiro, além do quadro de cerca de 100 mulheres que atuaram como enfermeiras.”

De acordo com Pereira, de cada três entrevistados e inspecionados, apenas um era considerado apto a integrar a FEB. Foram dois anos de treinamento até que, em 2 de julho de 1944, teve início o transporte dos contingentes para o front.

“Treinados às pressas para a guerra, de forma inadequada para o front e sem uma coordenação muito clara, no início houve dificuldade para os pracinhas se integrarem”, critica Pavese. Os brasileiros sequer conheciam a intensidade do inverno europeu, “participaram do conflito em condições precárias e, em sua maioria, eram civis com pouco treinamento”.

O termo pracinha para designar esses soldados foi cunhado pela imprensa da época e pegou, conforme pesquisa do historiador militar-coronel Pereira. O vocábulo “praça”, já fazia parte do jargão militar para designar os ingressantes na caserna, os que haviam “sentado praça”. Mas o diminutivo carinhoso nasceu no contexto da Segunda Guerra.

Eram representantes de todo o país. “Em geral, cresceram em fazendas, distritos e povoados que raramente ultrapassavam esparsos e minguados 5 mil habitantes”, conta o tenente-coronel. “Porém, ao contrário do que apregoam certos mitos populares, selecionou-se para o contingente febiano o que existia de melhor e mais digno na grande despensa humana da sociedade brasileira: um grupo de jovens incumbido de intervir, como guerreiros, no destino da humanidade; de nortear uma civilização que perdera o rumo.”

Ele classifica a FEB como “uma expedição de provincianos”, daí a expressão “guerreiros da província”, de seu mais recente livro. A letra da Canção do Expedicionário, do poeta Guilherme de Almeida, que se tornou hino extraoficial da FEB, enfatiza essa origem simples e diversa:

“Você sabe de onde eu venho? / Venho do morro, do engenho, / Das selvas, dos cafezais, / Da boa terra do coco, / Da choupana, onde um é pouco, / Dois é bom, três é demais.

Venho das praias sedosas, / Das montanhas alterosas, do pampa, do seringal, / Das margens crespas dos rios, / Dos verdes mares bravios, / Da minha terra natal.”

Legados: prestígio internacional e 1964

A vitória em Monte Castello deu moral à divisão brasileira que lutou pela assim chamada libertação da Itália do nazifascismo durante nove meses, de setembro de 1944 a maio de 1945. No total, 478 brasileiros morreram em combate – cerca de dois por dia.

Para o país, ficou o legado de ter contribuído ativamente para o fim da Segunda Guerra Mundial, atuando do lado dos vencedores e contra o nazifascismo que ameaçara o mundo.

“O poder de influência de uma nação no cenário mundial deriva da sua expressão política, econômica e militar. Inexiste melhor síntese desse poderio do que a ação dos seus soldados no campo de batalha”, exalta Pereira. “A participação vitoriosa numa guerra mundial produz respeito internacional incomparável. No caso brasileiro, esse respeito deu um salto espetacular em meados dos anos 1940. Antes da guerra, a percepção do Brasil no imaginário do europeu e do norte-americano correspondia a um estereótipo irreal: enorme selva fervilhante de cobras.”

A participação bélica foi um dos quesitos que cacifou o país a participar da criação da ONU, em outubro de 1945. E as Forças Armadas nacionais se credenciaram para atuações internacionais: desde a fundação da ONU, participaram de mais de 50 missões de paz em todas as partes do globo.

“A participação brasileira num conflito de escala mundial é louvada até hoje pelas Forças Armadas e, do ponto das relações internacionais, é preciso frisar que isso nos colocou em posição de destaque e deu certa legitimidade para poder demandar um reconhecimento maior de seu peso enquanto potência hegemônica na América do Sul”, analisa Pavese. “O prestígio diplomático significou a participação na arquitetura da governança global que começou a ser construída no pós-guerra, além, é claro, no fato de que houve fortalecimento das relações bilaterais com os Estados Unidos.”

No âmbito local, também houve impacto. Como ressalta a historiadora Gomes dos Reis, “quando o Brasil abandonou sua neutralidade para lutar contra o nazifascismo, acabou também enfraquecendo essas ideologias em seu próprio território”.

Por outro lado, como atenta Carolina Pavese, a sensação de vitória acabou reforçando “um sentimento nacionalista dentro das Forças Armadas, um patriotismo muito característico das nossas Forças Armadas”. E isso, somado ao status de vencedor adquirido pelos militares, “no final, acabou tendo influência grande na política brasileira”: “Esse éthos culminou com o golpe militar de 1964”, argumenta a socióloga.

Em 23 de fevereiro de 2025 haverá um evento em Gaggio Montano, cidade da região de Monte Castello, para celebrar os 80 anos da vitória ao nazifascismo. Também haverá uma cerimônia em memória dos brasileiros mortos em combate: 103 perderam a vida na última investida.

“A comemoração dos 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial é uma oportunidade para relembrar os horrores do conflito e reafirmar o compromisso com a paz e a democracia”, afirma o diplomata Renato Mosca de Souza, embaixador brasileiro na Itália. “A memória da tomada de Monte Castello e da participação da FEB na guerra serve como alerta para a importância de defender os verdadeiros valores da liberdade e da justiça, e de lutar contra todas as formas de opressão.”