Elas estão na base da pirâmide social e compõem maior e mais explorado segmento populacional do país. E nos ensinam serem necessários outros caminhos para contar a história nessa nação.”Awurê obá kaô, awurê obá kaô”

Essa é uma das expressões que o samba da Escola Unidos de Padre Miguel utilizou no enredo de 2025, no qual a agremiação homenageava a história do primeiro terreiro de candomblé do Brasil, dando especial atenção ao papel central que as mulheres africanas tiveram não só na construção desse terreiro, mas de toda a história de luta negra do Brasil. Há 52 anos, a Escola Unidos de Padre Miguel, localizada na Vila do Vintém, Zona Oeste do Rio de Janeiro, não desfilava no Grupo Especial das escolas de samba cariocas. E depois de mais de meio século, a escola foi rebaixada sob a justificativa de utilizar muitos termos em iorubá em seu desfile.

Iorubá é pilar do candomblé

Ah, para quem não sabe, a língua e a cultura iorubá são os pilares da construção dos candomblés no Brasil, ou seja: foram homens e mulheres africanos, oriundos da cultura iorubá que construíram não só boa parte da mão de obra que sustentou o Brasil por séculos, mas que também ressignificaram a escravidão e os sentidos de liberdade, elaborando cosmogonias e cosmologias que dialogavam diretamente com sua terra natal. Então, nada mais natural do que a forte presença de expressões em iorubá num samba enredo que homenageava uma casa de candomblé.

Entretanto, parece que isso é africano demais para alguns brasileiros.

A afrocentralidade que norteou os desfiles da maior parte das escolas de samba do Rio de Janeiro já foi tema de polêmica (racista) antes mesmo dos desfiles, quando um renomado carnavalesco (branco) suspirou irritado com tanto tema negro na Sapucaí de 2025. E quem viu os três dias de desfile, confirmou isso mesmo: o Carnaval de 2025 foi abertamente negro e afro. Uma espécie de afirmação coletiva que não nos deixa esquecer quem foi que começou com essa história de “escola de samba”, há quase um século. Gostem ou não, o Carnaval carioca não é Disney. E isso foi dito e repetido de forma magistral, em português, iorubá e também em línguas bantu.

Mas não é sobre o racismo de carnavalescos e jurados que eu quero falar aqui. Ainda que seja fundamental a denúncia e a exigência por justiça.

Espaço de educação

Eu quero falar daquilo que a gente pode aprender vendo, ouvindo e sambando com e no Carnaval brasileiro. Quero falar de como, no Brasil, as escolas de samba seguem sendo um espaço fundamental de educação que muitas vezes enfiam o dedo na ferida e mostram “a história que a história não conta”, ressaltando a importância e centralidade de personagens, temas e dinâmicas sociais e culturais que, quando muito, são lidas pela ótica da folclorização.

E, nesse dia 8 de março de 2025, Dia Internacional da Mulher, quero aproveitar a feliz e bela escolha da Unidos de Padre Miguel para falar sobre a importância de sabermos não só sobre personagens esquecidos, mas sobre outros caminhos para contar a história no Brasil. Uma tarefa muito bem executada por muitas mulheres negras – como a carnavalesca Márcia Lage, falecida no último janeiro –, que insistem em pensar e propor novos Brasis.

Isso porque acredito e defendo que a mulher negra, a mesma que está na base da pirâmide social brasileira, e que compõe maior e mais explorado segmento populacional do país, é uma condição que obriga que o Brasil seja visto de outra forma. E para tanto, trago o exemplo de duas importantes intelectuais: Lélia Gonzales, que em 2025 completaria 90 anos, e Beatriz Nascimento, falecida há 30 anos. Não que elas sejam a únicas, não foram, ainda bem. Mas essas duas mulheres conseguiram furar a bolha dos lugares predeterminados para elas, ultrapassando o campo acadêmico e se inserindo em uma luta política que reivindica a centralidade das mulheres negras na construção da identidade nacional. A partir de suas experiências e vivências como mulheres negras, ambas propuseram reflexões que desafiavam as narrativas eurocêntricas e racistas que historicamente marginalizaram a população negra no país. Suas obras abriram caminhos para novas formas de pensar o Brasil, questionando as estruturas de poder que sustentam o racismo e o sexismo na sociedade.

Mulheres que merecem ser lidas e grifadas

Mulheres que merecem ser conhecidas de perto, merecem ser lidas e relidas e grifadas, pois elas propuseram um Brasil de ponta-cabeça, no qual a falsa cordialidade brasileira era desmascarada, e o mito de democracia racial era desnudado, sobrando apenas o mais puro racismo à brasileira. Mas mulheres que não só denunciaram, mas também propuseram outros caminhos para a compreensão do Brasil. Caminhos que passaram pela fé, por outras relações com a natureza, pelo trabalho árduo, pela solidão no encalço, pela importância de viver e celebrar o coletivo, fosse ele uma família, uma agremiação um quilombo. Precisamos falar e conhecer mais e melhor essas mulheres, que podem ter escrito livros, dado aulas, cozinhado merenda em escolas públicas, educado seus filhos. Precisamos de um Brasil que também tenha sido escrito e gestado por mulheres negras.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.