Deixados para trás pelos terrroristas do “Estado Islâmico” derrotado, mulheres, crianças e outros civis acabaram em campos na Síria. Estigmatizados como colaboradores, rejeição das comunidades à repatriação é forte.A jornalista Sara al-Mansour conta que há pouco sua irmã, que vive em Basra, no sul do Iraque, ganhou uma nova vizinha: “Uma mulher que voltou do Daesh”, explica, usando o acrônimo local para o grupo extremista autointitulado “Estado Islâmico” (EI).

A recém-chegada contou que teria sido sequestrada pelos fundamentalistas islâmicos e forçada e ter filhos com seus captores. Ela vivia num acampamento, mas o governo iraquiano a liberou, após uma sindicância, e estava custeando sua previdência social.

“Mas aí minha irmã escutou o que os filhos dessa mulher estavam dizendo”, prossegue Al-Mansour, que vive em Bagdá. “Eles disseram que gostavam muito mais de viver em Mossul do que em Basra, porque lá eles podiam simplesmente entrar numa casa e se apoderar dela, e que conseguiam um monte de dólares americanos.”

No auge de seu poder, entre 2014 e 2017, o EI controlava vastos territórios do Iraque e da Síria. Em Mossul, seu reduto no norte iraquiano, eles requisitavam regularmente as casas dos locais, e costumavam pagar seus membros em dólar.

“O que se pode fazer com a mentalidade de gente assim?”, questiona Al-Mansour. “Eu não acho que eles deviam estar vivendo aqui.” E a jornalista iraquiana não está sozinha nesse ponto de vista.

Deixados para trás pelos guerrilheiros do EI

Em 2019 o EI estava quase completamente derrotado, tanto no Iraque quanto na Síria. Os terroristas que não tinham sido mortos nas batalhas finais foram capturados e encarcerados, deixando para trás suas companheiras, filhos e apoiadores civis.

Muitos desses associados acabaram confinados no assim chamado Al-Hol, um “acampamento fechado” no nordeste da Síria, próximo à fronteira com o Iraque. Antes abrigando cerca de 10 mil cidadãos desalojados, em 2019 sua população passava de 73 mil, a metade iraquianos, segundo cálculos das Nações Unidas.

O professor de estudos políticos Raed Aldulaimi, do Colégio Universitário Al-Imam Al-Adham, em Bagdá, identifica as possíveis categorias de internos do campo: “As famílias que acreditam no EI; aquelas de que um membro se juntou ao EI – e isso não quer dizer que o resto da família concordasse – e então ficaram preocupadas de ser punidas por isso; e aí também gente que não tinha afiliação com o EI, mas que na busca de segurança acabou ali.”

Civis que trabalhavam para o grupo extremista ou simplesmente permaneceram nas áreas controladas por ele também podem ter ficado estigmatizados como colaboradores. Desde maio de 2021, Bagdá vem tentando repatriar os internos de Al-Hol – dois terços dos quais menores de 18 anos, a maioria mulheres – mas o processo é lento e imprevisível.

Em 2025, porém a repatriação tornou-se mais urgente: desde 2019 o acampamento era supervisionado por forças sírio-curdas, assistidas pelos Estados Unidos. Porém com a queda do regime autoritário de Bashar al-Assad na Síria, em dezembro de 2024, e a eleição de Donald Trump como presidente americano, o destino de Al-Hol tornou-se menos claro. Nos últimos quatro meses, o governo iraquiano acelerou a retirada dos residentes.

Centros de reabilitação ajudam candidatos a retorno

Embora seja difícil obter números exatos, calcula-se que entre 8 mil e 12.500 puderam deixar Al-Hol desde 2021, além de outros 1.200 nos primeiros três meses de 2025.

A partir de agora, Bagdá planeja organizar dois comboios por mês, de modo a ter retirado todos os seus cidadãos até 2027. Estima-se que no momento eles sejam entre 15 mil e 20 mil – o fato de que alguns deixam o campo informalmente ou são traficados para fora dificulta especialmente uma estimativa confiável.

Uma área de preocupação potencial é a sobrecarga das instalações governamentais de reabilitação, explica Siobhan O’Neil, do Instituto de Pesquisa de Desarmamento das Nações Unidas (Unidir). Segundo as autoridades iraquianas, até 10 mil já passaram pelo campo de Jadaa, próximo a Mossul, como estação intermediária.

Lá, os retornados são submetidos a checagens de segurança, recebem aconselhamento e a oportunidade de se comunicar com suas famílias ou comunidades, como forma de facilitar a reintegração, explica O’Neil. No entanto, a imprensa tem relatado que em Jadaa falta pessoal ou suprimentos.

“Se o centro recebe muitos residentes mais, sem recursos adicionais, ou se há atraso na saída deles – o que, como constatamos na nossa pesquisa, contribui para resultados insatisfatórios – isso pode resultar em problemas”, explica a especialista em retiradas de conflitos armados.

Entretanto, como ilustra o caso relatado pela jornalista Sara al-Mansour, a repatriação também implica dificuldades menos tangíveis. Ao assumir o poder no Iraque, o EI dividiu o país ao longo de linhas sectaristas. De início, seus integrantes foram saudados por grande parte dos muçulmanos sunitas, considerando-os uma instância de resistência ao governo anterior.

Devido à brutalidade e extremismo do grupo, essas boas-vindas não duraram muito. Contudo todos que estiveram associados a ele, mesmo vagamente, permanecem sob suspeita. Segundo o Ministério do Interior, essa cifra incluiria uns 250 mil iraquianos.

Combatendo a rejeição das comunidades

Hárelatos de vizinhos destruírem lares de “famílias do EI”, espancarem seus membros ou delatarem-nos às autoridades por motivos questionáveis. Os homens temem ser presos; as mulheres, ser assediadas; e observadores da ONU têm notícias de professores se recusarem a matricular as crianças.

O’Neil, do Unidir, cita ainda aspectos periféricos: “Algumas de nossas entrevistas mostraram como as comunidades que recebem repatriados se preocupam com a competição econômica por empregos escassos; ou, bem especificamente, que algumas mulheres passem a se prostituir.”

Além da passagem pelo campo de Jadaa, outro método de reconciliação é os retornados terem como “patronos” líderes comunitários, que monitorariam seu bom comportamento. Em alguns casos, exige-se que eles repudiem publicamente o “Estado Islâmico”.

Infelizmente não há uma solução única para todos os problemas, comenta o professor de estudos políticos Aldulaimi. No momento, ele está estudando por que algumas comunidades iraquianas estão mais dispostas do que outras a integrar “famílias do EI”. Para os alocados em cidades grandes, por exemplo, onde ninguém os conhece, o retorno é mais fácil.

“Mas realmente depende do que aconteceu durante o período do EI naquela área. A situação mais complexa [de integração] é nas comunidades mais diversificadas, onde houve violência, ou escravização, ou agressão sexual.” Pode também depender de quais grupos combateram o EI na área, e se eles ainda se encontram lá.

Com base nas análises de sua equipe, O’Neil sugere que “comunicações melhores, mais estratégicas” podem ajudar. O Unidir constatou que os iraquianos eram mais abertos aos repatriados ao saber que eles passaram pelo programa governamental de reabilitação e por checagens de segurança – embora muitos não soubessem muito bem o que esses processos envolvem.