12/04/2025 - 7:49
País tem poucas centenas de profissionais especializados na hebiatria, ramo da medicina dedicado à saúde física e mental dos jovens, acompanhando-os desde a rotina escolar até a vida sexual.A série Adolescência chamou atenção para os riscos a que jovens estão expostos, especialmente nos ambientes digitais. No Brasil, poucos pais sabem a qual especialista recorrer nesta idade para acompanhá-los em seu desenvolvimento. O país tem poucas centenas de profissionais especializados na hebiatria, ramo da medicina voltado para adolescentes.
A hebiatria é baseada em consultas abrangentes, e aborda aspectos mais amplos dos pacientes, cobrindo desde a rotina escolar à vida sexual. Mas apesar de uma série de questões complicadas que assolam esta faixa da população, definida entre os 10 e os 20 anos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nem mesmo nos meios médicos a especialização é bem conhecida.
Além dos dois anos tradicionais de especialização em pediatria, a formação específica para cuidados com adolescentes demanda um período adicional de dois anos de imersão no tema. No Brasil, a especialidade foi reconhecida pela Associação Médica Brasileira (AMB) em 1998.
“É necessária uma formação ampla para além da questão biológica, incluindo noções de psicologia e psiquiatria”, pontua a hebiatra Mônica Mulatinho, que atua em Brasília.
Profissionais como ela fazem uma avaliação de saúde integral dos adolescentes, considerando temas como alimentação, sono e atividades físicas, e como estas questões podem estar ligadas à saúde mental.
Mulatinho conta que nunca havia ouvido falar na área durante a graduação em medicina, até que soube da possibilidade de se aprofundar no tema durante a especialização em pediatria, em meados da década de 1990. “Muitos médicos ainda passam pela universidade e não têm grande contato com a hebiatria”, afirma.
A médica faz parte de um grupo online que buscou reunir todos os profissionais da área no país, chegando a pouco mais de 300 integrantes, em grande parte mulheres. Uma delas é Valéria Barbosa, que atende em Belo Horizonte. Segundo ela, grande parte da divulgação da especialidade ainda é feita por “boca a boca”. “A maioria das pessoas ainda não conhece.”
O número pequeno de vagas de residências médicas para formação em medicina do adolescente é uma das razões que reforça esse cenário, aponta Elizete Prescinotti Andrade, presidente do Departamento de Adolescência da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP). Além disso, ela diz que há desconhecimento de pais e responsáveis sobre a importância de consultas regulares durante a adolescência.
“A consulta médica não se resume apenas a problemas físicos imediatos, e sim tem papel importantíssimo na avaliação de riscos, tais como saúde mental, acidentes e uso de substâncias psicoativas”, pontua.
Limitações no atendimento
Além de esbarrarem na falta de informação, pais costumam ter dificuldades em encontrar especialistas. “No Sistema Único de Saúde (SUS), não há atendimento voltado para os adolescentes, que na maioria das vezes são invisíveis nas Unidades Básicas de Saúde (UBS)”, afirma Andrade, do SPSP.
“Os adolescentes vão pouco ao médico, pois não ficam fisicamente doentes com frequência. E quando vão, perde-se a oportunidade de fazer prevenção de risco e mesmo de vacinação. Não existe programa contínuo de saúde escolar que poderia aproximar o adolescente e as UBS”, acrescenta.
Nos planos de saúde, a especialidade geralmente não é oferecida. E o interesse dos médicos nesses atendimentos é limitado, segundo Andrade, porque os convênios não os remuneram adequadamente, apesar de essas consultas demandarem mais tempo dos profissionais. Por isso, muitos recorrem ao atendimento particular.
Andrade argumenta que, assim como houve políticas públicas mais amplas para gestantes e diabéticos, o mesmo poderia ser feito para o atendimento aos adolescentes no país. Mulatinho concorda, e cita como exemplo os sucessos do país em grandes campanhas de conscientização no passado, como no caso da AIDS.
Estigmas e “fase complicada”
A escassez de hebiatras também é atribuída aos estigmas negativos sobre a adolescência. Segundo Barbosa, a percepção de que é difícil lidar com esses pacientes – expressa no termo pejorativo “aborrecência” – afasta alguns profissionais.
Apesar de ver méritos em filmes e séries de sucesso sobre esta fase da vida, com a tematização dos efeitos das redes sociais sobre a juventude, Barbosa acha que essas produções podem fomentar uma visão negativa desta fase da vida.
“A adolescência, como todas as faixas etárias, possui particularidades do desenvolvimento que os profissionais têm que estar capacitados a reconhecer e saber como atuar diante delas”, aponta Andrade, da SPSP. “Esse conhecimento muda essa visão de fase difícil; passamos a entender a importância dos cuidados e o quanto é recompensador trabalhar com eles.”
Para ela, a percepção na sociedade sobre o período contribui para que “profissionais de saúde, pais, professores e mesmo o poder público se distanciem dos adolescentes, sendo omissos em garantir seus cuidados e direitos”.
Relação com a tecnologia traz novos desafios à saúde
Segundo Barbosa, a busca pela especialidade aumentou diante das complicações na saúde mental associadas à pandemia e ao uso de telas. Além do tempo excessivo em dispositivos, questões como déficit de atenção, vício em apostas e a chamada síndrome FOMO (fear of missing out)– um temor constante de perder ou ficar de fora de algo – são desafios trazidos pela relação com a tecnologia. Outro problema comum nos consultórios, também agravado pela exposição midiática excessiva, são os transtornos alimentares.
“Séries como Adolescência mostram não apenas os riscos das redes sociais, mas também a importância das relações em casa”, lembra Mulatinho. “Neste caso, ficou muito claro algo que sempre observamos: é possível estar próximo fisicamente dos adolescentes, mas com grande distância.” A hebiatra aponta que, muitas vezes, falta conhecimento sobre a rotina dos filhos, ainda que os responsáveis possam estar próximos. Esse paradoxo é reforçado pelos dispositivos eletrônicos.
Mulatinho observa que, nos últimos anos, a busca pela especialidade apenas em casos graves vem reduzindo, com muitos pais recorrendo aos hebiatras para check-ups e procurando acompanhar o desenvolvimento dos adolescentes. Há alguns anos, ela lembra que a demanda por esses tratamentos normalmente ocorria com o “caldo entornado”, em situações nas quais os riscos para o paciente já eram bem elevados.
Na visão de Andrade, para alunos e residentes de medicina, a possibilidade de estar em uma área que certamente vai ter cada vez mais demanda de atendimento é um atrativo. Além disso, ela observa que pediatras gerais ou com outras especializações que têm pacientes que agora são adolescentes eventualmente sentem necessidade de ter maior conhecimento nesta área.
Diferenças no tratamento
Os profissionais reforçam que a grande vantagem da especialidade está nas consultas, geralmente ampliadas em relação às convencionais, e que envolvem momentos com e sem a presença dos responsáveis. Quando os adolescentes estão sozinhos, há a garantia de total sigilo, o que possibilita a discussão de temas desconfortáveis, mas vitais, como o consumo de drogas e a sexualidade.
“Muitas coisas não seriam contadas caso os pais estivessem ali. É um momento de privacidade. Os pacientes se abrem logo na primeira consulta. Às vezes, mudam até sua postura quando estão sem os responsáveis”, afirma Barbosa. “Os adolescentes querem contar o seu lado e as suas versões.”
Para Mulatinho, um dos grandes méritos das consultas especializadas é o de conseguir lidar com casos de abusos, que em sua maioria são cometidos dentro dos núcleos intrafamiliares. “São situações que necessitam de uma escuta muito bem apurada, na qual são observadas todas as reações do paciente”, afirma.
Os benefícios e riscos de tratamentos como o uso de remédios para a eliminação de acnes, comuns nesta fase, também recaem sobre os profissionais. Recentemente, os hebiatras passaram a ter como uma de suas prioridades a avaliação e acompanhamento do uso de suplementos para ganhar massa muscular, assim como as atividades nas academias dos adolescentes, que recorrem cada vez mais cedo a estes recursos, muitas das vezes impulsionados por perfis nas redes
Indo até os pacientes
As redes sociais estão ligadas a alguns dos principais problemas enfrentados pelos adolescentes hoje, mas também são um meio usado por muitos especialistas para se aproximar do público.
Mulatinho conta que os hebiatras mais presentes nas redes têm um grupo em que conversam sobre conteúdos e ajudam a divulgar a especialidade. Em seu caso, o Instagram foi uma forma de publicar sobre o tema, e também abrir espaço para que interessados possam se consultar. Barbosa foi pelo mesmo caminho, e afirma que teve que se adaptar às preferências do público alvo, o que implica, por exemplo, publicar vídeos de duração mais curta.
Em seus perfis, alguns profissionais costumam oferecer a possibilidade de consultas remotas – boa parte dos especialistas está em maiores centros. Ao redor do Brasil, iniciativas conjuntas também buscam divulgar o tema e oferecer tratamentos aos adolescentes, muitas vezes de forma voluntária. No caso de Brasília, há o Adolescentro, em que Mulatinho é colaboradora.
Em Belo Horizonte, há o Janela da Escuta, projeto no qual Barbosa atua como voluntária, e que funciona como extensão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ainda em Minas Gerais, o Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (HC-UFTM/Ebserh) oferece atendimentos no Centro de Atenção Integrada em Saúde (Cais).
Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente mantém o programa Aquarela, voltado para o atendimento de jovens transgênero.