23/05/2025 - 5:30
Expoente do neoconcretismo, artista brasileira que sacudiu bases da arte do século 20, transformando o observador em parte da obra, ganha sua primeira exposição solo na Alemanha.”Por favor, toque.” O pedido, feito na década de 60 pela pintora e escultora brasileira Lygia Clark (1920-1988), desafiou as convenções da arte e da relação entre artista, público e espaço. Agora, esse convite reverbera no salão de vidro com enorme pé direito da Nova Galeria Nacional (Neue Nationalgalerie), em Berlim. O museu recebe, a partir desta sexta-feira (23/05) até 12 de outubro, uma retrospectiva com cerca de 120 obras do expoente do neoconcretismo brasileiro, em sua primeira exposição solo na Alemanha.
É também a primeira vez que o museu, fundado em 1968 e dedicado à arte do século 20, recebe uma mostra de uma artista plástica não europeia. Ainda que tardia, a escolha revela um interesse crescente de instituições culturais europeias pela arte produzida por mulheres brasileiras e sul-americanas, a exemplo da exposição da modernista Tarsila do Amaral (1886 – 1973) em Paris, encerrada em fevereiro.
“Nosso objetivo é mostrar mais artistas, especialmente mulheres, mas também mais artistas da América do Sul. Lygia Clark é uma figura tão importante para o século 20 e, sim, é hora de fazer uma exposição aqui na Alemanha e apresentá-la ao público em geral. É importante que a gente diversifique nosso conhecimento da arte do século 20”, afirmou à DW Irina Hiebert Grun, uma das curadoras da exposição.
A retrospectiva segue uma linha cronológica, útil para entender como a artista, apesar de ter bebido direto da fonte das vanguardas europeias, criou cedo uma linguagem própria e pioneira. Suas primeiras pinturas, do final da década de 1940 e início da década de 1950, época em que estudou em Paris com mestres como Fernand Léger, têm forte influência cubista, mas já é possível vislumbrar o seu intento de dissolver a fronteira entre imagem e o espaço.
Seu passo decisivo nessa direção foi a criação do conceito de “linha orgânica” – um traço que não delimita ou separa planos, mas que serve como um espaço intermediário vivo. A “linha orgânica” surge, por exemplo, quando duas superfícies se tocam, como a moldura e a tela, e a linha que as separa é, ao mesmo tempo, a linha que as une. Esse conceito marca a transição de Lygia Clark do concretismo geométrico para uma abordagem mais sensível e fluida da forma e da linha.
“Acho que o mais interessante para nós foi ver a rapidez com que ela se desenvolveu e chegou a uma linguagem artística própria”, disse Maike Steinkamp, a outra curadora da mostra.
A ideia de “linha orgânica” foi inicialmente aplicada nas obras “Descoberta da Linha Orgânica”, de 1954. As curadoras da retrospectiva conseguiram reunir os três quadros dessa série existentes, todos de coleções particulares – um deles veio da sala de estar da cantora Marisa Monte, no Rio de Janeiro.
Elas estiveram no Brasil dois anos atrás para pesquisa e prospecção de obras. Contaram com a ajuda de Jones Bergamin, dono da Bolsa de Arte, a maior casa de leilões do Brasil, e do galerista Max Perlingeiro, da Pinakotheke, que fizeram a ponte até colecionadores no Rio de Janeiro e em São Paulo.
“Esse é um dos principais esforços de Clark: ela queria explorar o espaço e sair da moldura e fazer parte da sala ou do espaço humano, por assim dizer. Por isso, queríamos mostrar todo esse desenvolvimento”, afirmou Steinkamp.
Arte participativa
O conceito progrediu para séries chamadas “Contra Relevos” e “Casulos”, em que a obra de Clark se move de fato para fora do plano bidimensional, para nunca mais voltar.
O poeta Ferreira Gullar (1930 – 2016), que também era crítico de arte e foi o autor do Manifesto Neoconcreto, que conceituou o movimento artístico, disse que era inevitável que as obras de Clark acabassem deixando a parede por completo e caindo no chão, tornando-se uma “criatura incomum e inesperada”.
Cumprindo essa “profecia”, vieram em 1959 as esculturas de Clark mais famosas, os chamados “Bichos”, que marcaram o fim de sua prática de pintura. Eles são estruturas metálicas em que as dobras, articulações e formas se relacionam com o espaço e com o corpo do espectador de maneira interativa, com possibilidades de forma e movimento infinitas.
“Quando me perguntam quantos movimentos o Bicho pode efetuar, eu respondo: não sei nada disso, você não sabe nada disso; mas ele, ele sabe”, escreveu Clark.
As contribuições da artista mineira foram decisivas para o desenvolvimento da arte participativa – em oposição à arte performática –, colocando os participantes, e não o artista, no centro da experiência. Clark buscou, assim, libertar o público do comportamento passivo ao qual havia sido condicionado até então.
Na retrospectiva da Nova Galeria Nacional, há “Bichos” originais e réplicas feitas para serem manuseadas pelo público.
O corpo no centro
As obras seguintes de Clark foram, em sua maioria, compostas por materiais cotidianos, “objetos sensoriais” que permitem a participação de qualquer pessoa, em qualquer lugar. O foco passa a ser a relação entre os indivíduos, sendo os objetos criados por Clark apenas mediadores.
É o caso de “Baba antropofágica”, de 1969, em que um grupo fica ao redor de uma pessoa e a cobre de fios saídos da boca, melados de saliva – algo parecido com uma aranha envolvendo sua presa em um casulo.
Esse aspecto interativo é muito atual, observam as curadoras. “Acho que é realmente do que as pessoas gostam – elas não querem mais apenas olhar para objetos, mas querem interagir e senti-los de diferentes maneiras”, afirmou Steinkamp.
“Acredito que há uma espécie de saudade de estar em contato com o próprio corpo”, complementou Grun.
A exposição adentra ainda na fase de arte terapia de Clark, na qual ela criou objetos relacionais, como conchas, saco com areia, pedras, saco plástico com ar e almofadas, para serem usados em processos terapêuticos.
As pessoas são orientadas se deitar num colchão e estabelecer uma conexão entre seus inconscientes e esses objetos, dotados, na visão de Clark, de um poder de cura. No final das sessões, ela pedia aos participantes que descrevessem as imagens internas que surgiam durante o tratamento, registrando-as por escrito.
Ela ensaiou o processo com alunos e chegou a mostrá-lo para o músico Caetano Veloso, em visita à artista em Paris, em 1970, quando ambos estavam em exílio na Europa durante a ditadura militar brasileira. A experiência rendeu a música If You Hold a Stone.
A noção do corpo como um campo de experimentação e expressão era um ponto de convergência entre a obra de Clark e do movimento tropicalista, do qual Caetano fazia parte.
Conexão Brasil-Europa
A curadora Irina Hiebert Grun fez seu doutorado em arte contemporânea brasileira e conhecia bem o trabalho de Clark. Maike Steinkamp havia se dedicado ao estudo da arte concreta europeia e não tinha muita familiaridade com o movimento neoconcreto brasileiro, que tem como outros nomes de destaque Hélio Oiticica e Lygia Pape.
“Eu venho dessa abordagem europeia, trabalhei muito com Hans Arp e Sophie Tauber-Arp, ambos foram expostos na primeira Bienal de São Paulo, no início dos anos 50. Fiquei muito impressionada com a influência deles no Brasil e, então, começamos a conversar e vimos que tínhamos que fazer uma exposição dela”, afirma Steinkamp.
“Acho que foi muito rico a gente ter partido de ângulos tão diferentes – eu não sabendo muito sobre arte brasileira, e Irina com todo o seu conhecimento – e poder entender que Lygia Clark pertence também a este lugar, para ser mostrada na Nova Galeria Nacional e na Europa. Há tantos laços entre a arte europeia e a arte brasileira, e é interessante ver como os artistas brasileiros realmente se emanciparam das tradições europeias”, prosseguiu.
Para Alessandra Clark, neta da artista, que veio a Berlim para ajudar a montar a retrospectiva, há muitos pontos de contato, até então desconhecidos, entre obras de artistas contemporâneas brasileiras e europeias.
Ela lembra, por exemplo, de uma exposição, conduzida pelo curador brasileiro Paulo Herkenhoff, que colocou em paralelo a arte de Clark e a da artista polonesa Katarzyna Kobro.
“Acho que a mulher está se tornando um ponto central na arte, está sendo bem estudada agora. Eu acho que no futuro não haverá diferença entre gênero ou qualquer coisa. É apenas uma questão de tempo.”