Em meio à ofensiva contra Irã, Israel alimenta ideia de forçar derrubada do regime fundamentalista. Mas histórico de intervenção externa no Afeganistão, Iraque e Líbia serve de advertência para risco dessa estratégia.Três dias após o início da guerra contra o Irã, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu afirmou em entrevista à emissora americana Fox News que uma “mudança de regime” em Teerã “certamente pode ser um desdobramento” da ação das forças de Tel Aviv ali, já que o governo estava “muito fraco”.

Já o presidente dos EUA, Donald Trump, enviou sinais contraditórios, indicando em alguns momentos que poderia agir para eliminar o “líder supremo do Irã”, o aiatolá Ali Khamenei. “Ele é um alvo fácil, mas está seguro lá – não vamos tirá-lo de lá (matá-lo!), pelo menos por enquanto”, disse.

Ainda não está claro quanto tempo esse “por enquanto” durará. Quanto mais tempo durar o conflito entre Israel e o Irã, maior poderá ser a tentação de Israel e dos EUA de eliminar não apenas o programa nuclear iraniano, mas também o regime teocrático que controla o Irã há mais de quatro décadas.

Os riscos das tentativas de “mudança de regime”

“É altamente duvidoso que uma mudança de regime possa ser implementada de fora, com o apertar de um botão”, adverte Eckart Woertz, diretor do departamento de estudos do Oriente Médio no Instituto Alemão de Estudos Globais e Regionais (GIGA), sediado em Hamburgo. “E se ela [a mudança de regime] seguirá a direção desejada é outra questão completamente diferente”, acrescenta,

Ele adverte, por exemplo, para o risco de a Guarda Revolucionária do Irã tomar o poder, levando o regime a se tornar ainda mais agressivo. Ou que o regime entre em colapso completo, de maneira semelhante ao que aconteceu no Iraque após a invasão dos EUA em 2003 ou na Líbia após a campanha da Otan em 2011, gerando consequências imprevisíveis para a região.

Em geral, a “mudança de regime” promovida por um ator externo é um conceito altamente controverso. De acordo com a lei internacional, isso é uma clara violação da soberania do Estado em questão. Além disso, muitas vezes essa medida não é legitimada democraticamente, e geralmente leva a um vácuo de poder ou a uma fase de violência e instabilidade. Muitas vezes os governos recém-instalados não conseguem resolver os problemas do país, o que leva a mais crises e conflitos.

Na história recente, ocorreram várias tentativas de mudança de regime por via militar externa – e as consequências dessas intervenções ainda podem ser sentidas hoje.

Afeganistão (2001)

Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA, os aliados do país na Otan se juntaram a Washington para derrubar o regime fundamentalista do Talibã no Afeganistão, que abrigava a organização terrorista Al-Qaeda, responsável pelo ataque em Nova York.

Os primeiros sucessos foram alcançados rapidamente e o grupo Talibã foi expulso de Cabul no final de 2001. Posteriormente, a aliança tentou estabelecer estruturas democráticas no Afeganistão. Ocorreram melhorias, por exemplo, nos direitos das mulheres e das minorias, bem como na educação e na saúde. No entanto, os aliados da Otan discordaram em muitas questões, como, por exemplo, a forma como a ajuda militar, política e de desenvolvimento deveria ser combinada. Também não havia um plano de como as estruturas tradicionais do país poderiam ser adequadamente levadas em consideração durante a reconstrução.

Dessa forma, a segurança no país permaneceu extremamente precária por 20 anos. Nessas duas décadas, o Afeganistão foi repetidamente palco de conflitos, com o Talibã lançando regularmente contraofensivas. Cerca de 3,6 mil soldados ocidentais e quase 50 mil civis afegãos foram mortos entre 2001 e 2021. O custo total da missão no Afeganistão alcançou mais de um bilhão de dólares.

Em meio à caótica retirada dos EUA no verão de 2021, o Talibã rapidamente voltou ao poder, e quase todos os avanços dos últimos 20 anos foram revertidos. Violações de direitos humanos, tortura, assassinatos extrajudiciais e execuções públicas continuam ocorrendo. O país permanece isolado e extremamente pobre, com cerca de 23 milhões de pessoas dependentes de ajuda humanitária.

Em fevereiro de 2024, a Comissão de Investigação do Parlamento Alemão (Bundestag) sobre a participação militar do país europeu no Afeganistão fez um balanço desastroso: durante 20 anos, a coalizão ocidental não teve uma estratégia realista para construir um estado estável que pudesse garantir sua própria segurança.

Iraque (2003)

Após uma década de sanções e de ações “policiais” pontuais contra o Iraque de Saddam Hussein, os EUA decidiram em 2003 derrubar por completo o regime de Bagdá por meio de uma invasão militar. A ação, que contou com alguns poucos países aliados, ocorreu sem autorização do Conselho de Segurança da ONU.

Ao tentar justificar a invasão, o presidente George W. Bush argumentou que a ação era necessária porque Saddam Hussein teria ligações com a Al-Qaeda, além de possuir armas de destruição em massa – alegações que depois se provaram falsas.

“Saddam Hussein foi derrubado não porque possuía armas de destruição em massa, mas justamente porque não as possuía”, aponta duas décadas depois o especialista em Oriente Médio Eckart Woertz. E o Irã pareceu ter notado isso à época.

Inicialmente, tudo pareceu correr bem. Após derrotar as tropas de Saddam, os americanos criaram um governo de transição, sem a participação de membros do antigo regime. Mas logo os novos regentes passaram a ser acusados de má administração e falta de conhecimento sobre as complexidades do país.

As hostilidades pré-existentes entre os diferentes grupos étnicos e religiosos do Iraque logo se transmutaram em quadro de guerra civil. Muçulmanos sunitas passaram a matar muçulmanos xiitas e vice-versa. Ataques sangrentos passaram a ocorrer diariamente. Paralelamente, após a dissolução do Exército iraquiano, soldados desempregados passaram a atacar as tropas de ocupação dos EUA

Uma década mais tarde, em 2014, em meio ao vácuo de poder, a organização terrorista Estado Islâmico (EI) conquistou vastas áreas do Iraque, impondo um regime de terror, na qual a tortura, violações sistemáticas dos direitos humanos e o assassinato em massa de grupos étnicos inteiros, como os yazidis, se tornaram a norma.

Vinte anos após a invasão dos EUA e a tentativa de mudança de regime, a situação no Iraque finalmente parece mais calma. A violência diminuiu e eleições parlamentares estão previstas para ocorrer em novembro. Ainda assim, o Iraque continua sendo um país em transição.

Líbia (2011)

A Líbia também continua sofrendo as consequências de uma tentativa de mudança forçada de regime que contou com a participação de atores externos. Uma guerra civil eclodiu no país em 2011, na esteira da Primavera Árabe, com protestos contra o governo do ditador Muammar al-Gaddafi.

No poder desde 1969, Gaddafi tentou reprimir a revolta popular com extrema violência. Diante da repressão, a Otan interveio militarmente, estabelecendo uma zona de exclusão aérea para proteger a população civil que havia se insurgido contra o regime. A medida enfraqueceu Gaddafi de maneira decisiva. Ele acabaria sendo assassinado por insurgentes em 20 de outubro de 2011, marcando o fim da sua ditadura de mais de quatro décadas.

No entanto, as diferentes facções da Líbia nunca estabeleceram um governo que fosse aceito em todo o país. Em vez disso, o país foi tomado por novos conflitos entre milícias rivais, que continuam até hoje. O Estado praticamente se desintegrou, com dois governos diferentes lutando pelo controle do território desde março de 2022. Além disso, várias organizações terroristas seguem ativas no país atualmente. Combates ocorrem constantemente, com o envolvimento de mercenários estrangeiros. A situação dos direitos humanos no país é extremamente precária: sem um Estado funcional, há abuso maciço de refugiados, tomada de reféns, tortura e violência contra mulheres.

E as chances de uma mudança de regime no Irã?

Diante do histórico do Afeganistão, Iraque e Líbia, seria de se esperar mais cautela diante uma iniciativa semelhante no Irã. O especialista Eckart Woertz vê um problema adicional: no final das contas, algum grupo interno ainda teria que agir para forçar uma mudança de governo.

“Não vejo um movimento rebelde muito forte dentro do Irã que possa derrubar o regime atual”, diz.

E se essa força vir de fora do Irã? “Houve uma mudança de regime bem-sucedida na Alemanha no final da Segunda Guerra Mundial, mas isso exigiu uma invasão terrestre”, diz Woertz. “E você ainda precisaria de uma transição na qual a população local se agrupe para apoiá-lo. Isso pode ser facilitado se houver um inimigo externo comum, como a União Soviética depois de 1945, que encubra as diferenças. E uma mudança de regime [bem-sucedida] nunca aconteceu apenas com bombardeios aéreos, e não acho que o Irã será uma exceção agora.”