24/10/2018 - 9:12
É inegável que a proteína animal, com destaque para a carne (há também ovos e leite, por exemplo) – principalmente a cozida ou assada –, foi uma das principais responsáveis pelo cérebro desenvolvido que o Homo sapiens possui hoje. A princípio oriunda da caça, sua disponibilidade aumentou exponencialmente com a domesticação de animais, como os bovinos, iniciada há cerca de 10 mil anos. Desde então, a pecuária não parou de crescer.
Hoje, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ela responde por 40% do valor global da produção agrícola e pelos meios de subsistência e segurança alimentar de 1,3 bilhão de pessoas. Mas isso tem um preço ambiental muito grande, que inclui desmatamentos, consumo excessivo de água, poluição ambiental, emissão de gases do efeito estufa e perda da biodiversidade natural.
Os números atuais da agropecuária impressionam. O setor emprega mais de 26% dos trabalhadores do mundo, mesmo sem incluir no cálculo quem atua ao longo da cadeia produtiva da carne, como matadouros, empacotadores, distribuidores e varejistas. “A pecuária contribui com 39% da proteína e 18% da energia consumida pela população humana em nível global, proveniente de 17 bilhões de animais”, diz o zootecnista Paulo César de Faccio Carvalho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Esses números deverão continuar a crescer graças, em parte, ao aumento do mercado consumidor por causa do incremento demográfico e da renda da população. Segundo a FAO, em 2016 foram produzidas no mundo 317 milhões de toneladas de carne, volume que deverá saltar para 465 milhões de toneladas em 2050. Atingir tais níveis de produção implica prover terras para o pastoreio do gado e a plantação de forragens, o que, por sua vez, exige áreas desmatadas, água, fertilizantes e outros insumos.
Mudanças aceleradas
É aí que começam os impactos ambientais da pecuária. “Essa atividade está causando e acelerando as mudanças climáticas tanto de forma direta, liberando gases de efeito estufa ao longo da cadeia de produção, quanto indiretamente, desencadeando o desmatamento e mudanças de grande monta no uso da terra”, diz a bióloga Paula Cals Brügger Neves, do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Ela é também a grande responsável pelo empobrecimento, fragmentação e perda de habitats, fatores que lideram a atual queda vertiginosa de biodiversidade.”
Que a pecuária causa danos ambientais parece inegável. O problema é como medi-los, quantificá-los. Diante da pergunta sobre quais os principais impactos dessa atividade no meio ambiente, o economista Antônio Márcio Buainain, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é categórico. “A única resposta apropriada para essa pergunta é aquela padrão dos economistas: depende”, diz.
Isso porque, de acordo com ele, os impactos estão relacionados a diversas variáveis. “De que pecuária estamos falando?”, pergunta. “Onde é praticada? Em que bioma? Que sistema produtivo é utilizado? Pode ter um resultado muito negativo quando implantada em florestas que precisam ser desmatadas, ou em pastos degradados. Mas pode ter consequências pequenas quando praticada em pastos de elevada qualidade, que contribuem para sequestrar a maior parte dos gases de efeito estufa emitidos.”
Buainaim lembra que historicamente, pelo menos no Brasil, a pecuária baseou-se em um sistema extensivo, itinerante, ao longo de séculos. “O grande responsável pela ocupação do território nacional foi o boi, que se interiorizou em busca de pastos, e o homem foi atrás e povoando”, afirma. “Esse modo de criação é sempre predatório, porque se baseia fundamentalmente no desmatamento da vegetação original, seja ela mata ou caatinga. Ainda hoje a atividade, em que pesem os notáveis progressos registrados nas últimas décadas, segue sendo extensiva e vem contribuindo para a derrubada de florestas e para emissões elevadas de gases de efeito estufa.”
Desmatamentos na conta
Alguns dados da FAO ajudam a dar uma ideia dos impactos ambientais da pecuária. É o caso do uso da terra. Essa atividade é de longe a que precisa de mais espaço para se desenvolver. A área total ocupada por pastagens é equivalente a 26% da superfície terrestre – sem contar a parte coberta de gelo. Por seu lado, as plantações de alimentos representam 33% das terras aráveis. Ao todo, a produção de gado representa 70% de todas as áreas agrícolas. No Brasil, onde há mais bois do que pessoas – 218 milhões ante 207 milhões –, as pastagens ocupam cerca de 172 milhões de hectares, além de 31 milhões de hectares de plantações de soja, cultura ligada à produção de carne (dados de 2015).
Não surpreende, portanto, que a pecuária seja responsável por grande parte dos desmatamentos do país. “Mais de 80% do desflorestamento no Brasil, entre 1990 e 2005, foi causado pela conversão de terras em pastos”, diz Paula. “Em seis países analisados na América do Sul, a expansão das pastagens causou a perda de ao menos um terço das matas.” Isso leva à destruição de habitats e à consequente redução da biodiversidade, pondo em risco ou extinguindo muitas espécies de animais.
Em termos hídricos, Paula informa que a agricultura responde por 92% do consumo de água doce do planeta, volume do qual quase um terço diz respeito à produtos de origem animal. “Para produzir um quilo de carne bovina são necessários 15.400 litros; de suína, 5.900 litros; e de aves (galinha), 4.300 litros”, diz. “Isso pode variar bastante, no entanto. No geral, é difícil afirmar qual espécie seria a mais impactante, pois isso vai depender do tipo de dano analisado, da metodologia aplicada e de particularidades de cada cadeia produtiva, como idade de abate, grau de confinamento, tipo de alimento (pasto ou grãos), por exemplo.”
Números contestados
Nesse aspecto, Buainain contesta alguns dados amplamente divulgados, como essa necessidade de mais de 15 mil litros de água para produzir um quilo de carne bovina. “Esse número é enorme”, ressalta. “Uma cisterna inteira, que garante abastecimento para famílias no Semiárido durante alguns meses, para produzir apenas 1 quilo. Mas não se diz que 93% desse volume é a chamada água verde, proveniente das chuvas, que é incorporada à pastagem e à alimentação animal, sem causar nenhum dano ao ambiente. Outros 4% provêm de reservatórios superficiais e subterrâneos, a chamada azul, e 3% são da cinzenta, aquela usada para a diluição de efluentes no processo de produção. O consumo pela pecuária não coloca, portanto, nenhum risco hídrico, e na medida em que o sistema produtivo vem melhorando, até contribui para conservar água.”
A liberação de gases do efeito estufa é outro impacto negativo da pecuária. A estimativa é de que essa atividade é responsável por algo entre 6% e 32% do total das emissões no planeta. O dado da FAO para esse item fica a meio caminho desses extremos: 14,5%. A grande diferença entre esses números está ligada à metodologia e à base de cálculo. Se forem consideradas apenas as emissões diretas, o índice será menor. No caso de serem incluídas as liberações causadas pela produção de forragens, fertilizantes, adubos, agrotóxicos e a derrubada de florestas, a taxa será maior.
Mesmo diante desse cenário, há espaço para otimismo. “É preciso levar em conta as mudanças pelas quais a pecuária vem passando no Brasil”, alerta Buainain. “Em 10 anos, a produtividade do rebanho brasileiro aumentou 20%, com apenas 2% de crescimento do número de animais. Isso significa que o impacto por animal vem caindo devido à eficiência produtiva.”
Carvalho lembra outro aspecto. “A consciência ecológica na produção agropecuária é muito maior que há 20 anos, seja no Brasil ou no mundo”, garante. “Assuntos como os gases do efeito estufa e o aquecimento global elevaram a questão ambiental a novo patamar.” De acordo com ele, no Brasil, em particular, toda a discussão sobre legislação e código florestal vem produzindo profundas transformações com relação a esse tema. “Estatísticas recentes da Embrapa e da Nasa confirmam que o país está conservando suas áreas”, diz. “Claro que há problemas, e são muitos. Mas muito longe do que víamos há 20 anos, quando derrubar matas e abrir fazendas era o modus operandi, inclusive com apoio governamental.”