Autoridades afirmam que ilustração publicada por revista satírica seria caricatura do profeta islâmico. Periódico, conhecido por ser crítico ao governo, nega relação. Caso gerou protestos no país.A polícia turca prendeu quatro funcionários da revista satírica LeMan nesta terça-feira (01/07), por “incitar o ódio e desrespeitar valores religiosos” ao publicar uma charge que, segundo as autoridades, retrataria o profeta islâmico Maomé.

O caso gerou protestos e ataques contra a sede do periódico, que nega a relação da caricatura com o profeta.

Na charge em preto e branco, dois homens com asas de anjo flutuam e se apresentam um ao outro: “Salam aleikum, eu sou Muhammad”, diz um. O outro responde: “Aleikum salam, eu sou Moisés”. Ao fundo, vê-se uma chuva de balas e casas em chamas, em uma alusão ao conflito em Gaza.

As figuras aladas flutuando no céu foram interpretadas por autoridades como sendo o profeta islâmico Maomé e o judaico Moisés.

Entre os detidos estão o cartunista Dogan Pehlevan, o editor-chefe da LeMan, Zafer Aknar, o designer gráfico Cebrail Okcu e o gerente Ali Yavuz também. Mandados de prisão também foram emitidos para dois editores que estariam fora do país.

A LeMan é conhecida por sua postura crítica ao governo e frequentemente se torna alvo da Justiça turca e de grupos conservadores aliados ao regime de Recep Tayyip Erdogan.

Charge gerou protestos

Na noite de segunda-feira, manifestantes ligados a um grupo islâmico atiraram pedras contra a sede da LeMan no centro de Istambul e entraram em confronto com a polícia. O confronto escalou quando dezenas de pessoas também atacaram um bar que os funcionários da revista costumam frequentar. A polícia usou bombas de borracha para dispersar a multidão.

Já nesta terça-feira, dezenas de manifestantes realizaram outro protesto após as orações do meio-dia em uma mesquita na principal praça de Istambul, sob forte presença policial. Eles exibiram um cartaz com os dizeres: “Insultar o Mensageiro de Deus e os valores islâmicos não é liberdade de expressão, é islamofobia”.

Também entoaram cantos como “Não se esqueçam da Charlie Hebdo”, se referindo ao ataque jihadista de 2015 à revista de Paris, quando atiradores mataram 12 pessoas depois que o periódico publicou caricaturas que satirizavam o profeta Maomé.

“Eu acredito que é um ataque às religiões e aos nossos valores”, disse Ridvan Kaya, líder da associação Ozgur-Der, organizadora do protesto, à agência de notícias AP.

Erdogan também criticou o que chamou de “desrespeito” ao profeta Maomé.

“É uma provocação clara disfarçada de humor”, afirmou ele em um discurso na TV. “Aqueles que demonstraram insolência com o Mensageiro de Deus e outros profetas prestarão contas perante a lei.”

LeMan nega acusações e pede liberdade de expressão

Em comunicado publicado na noite de segunda-feira, a LeMan negou as acusações e afirmou que a ilustração não retratava o profeta, mas sim um homem muçulmano chamado Muhammad, nome comum cuja grafia é a mesma usada para Maomé, e que a intenção era destacar o sofrimento dos muçulmanos em Gaza.

A revista pediu desculpas por qualquer ofensa causada, mas também rechaçou o que chamou de campanha de difamação contra a liberdade de expressão.

A controvérsia reacende o debate sobre a já criticada situação da liberdade de imprensa na Turquia. A organização Repórteres Sem Fronteiras classificou o país em 159º lugar entre 180 nações no Índice de Liberdade de Imprensa de 2025.

Nesta terça, a Media Freedom Rapid Response (MFRR), uma entidade que monitora violações à liberdade de imprensa, condenou o que classificou como “ataques” contra a LeMan e sua equipe, e pediu às autoridades turcas que protejam os trabalhadores da mídia e garantam a liberdade de imprensa.

Por que charges de Maomé geram reações?

Segundo Rauf Ceylan, professor do Instituto de Teologia Islâmica da Universidade de Osnabrück, a indignação com charges de Maomé está profundamente enraizada nos discursos teológicos, históricos e políticos. Ele explica à DW que, em muitas sociedades muçulmanas, qualquer representação visual do profeta é considerada blasfema.

No entanto, o fator mais determinante para as reações extremas é, segundo Ceylan, de ordem simbólica e política. “As charges não são vistas como liberdade de expressão, mas como um ataque direto à dignidade religiosa, à identidade cultural e à autoestima das comunidades muçulmanas.”

Ceylan acrescenta que atores radicais conseguem transformar indignação moral em mobilização política. “A simples menção ao nome ‘Muhammed’ é suficiente para desencadear uma onda de indignação religiosa, impulsionada por agentes do Estado”, diz ele.

A repressão, portanto, envia um duplo recado: a imagem foi reinterpretada como ofensa ao Islã, e a indignação justifica ações policiais contra vozes críticas, defende o especialista.