11/07/2025 - 9:35
Na sua última semana como embaixador brasileiro na Alemanha, Roberto Jaguaribe relata à DW os desafios para ampliar a relação bilateral nos governos Bolsonaro e Lula e analisa o papel da União Europeia no mundo.Embaixador brasileiro mais longevo na Alemanha, Roberto Jaguaribe deixa o cargo nesta sexta-feira (11/07), após ter representado dois governos brasileiros muito distintos – Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva – e lidado com três governos alemães, liderados por Angela Merkel, Olaf Scholz e, agora, Friedrich Merz.
Desde fevereiro de 2019, quando chegou a Berlim, ele acompanhou também, a partir da maior economia da Europa, desenvolvimentos geopolíticos como a invasão russa da Ucrânia, a alta em gastos militares no continente, a crescente competitividade dos produtos Made in China e o retorno de Donald Trump à Casa Branca.
Nesta entrevista à DW, ele conta como foi representar o Brasil durante o isolamento internacional dos anos Bolsonaro e depois receber o entusiasmo alemão com a eleição de Lula, e a dificuldade de elevar as trocas econômicas a um patamar equivalente à da relação histórica e política entre os dois países.
“Quando cheguei aqui, havia uma mudança radical no Brasil – uma mudança malvista não apenas na Alemanha, mas praticamente na Europa inteira”, afirma. “Eu era o homem feio no baile, ninguém queria dançar comigo.” Depois da eleição de Lula, conta, todas as autoridades alemãs o “chamaram para dançar”.
Esse entusiasmo, porém, não se refletiu em uma “aceleração” significativa da relação econômica, em parte por conta “uma certa inquietação” sobre o futuro da indústria alemã. Ele considera que a atual corrente de comércio entre Brasil e Alemanha – de 20 bilhões de dólares em 2024 – é muito inferior à “intensidade do relacionamento político e das convergências de interesses e de valores” entre os dois países.
Para Jaguaribe, uma solução à vista seria a entrada em vigor do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE), que, na sua opinião, traria ganhos econômicos para os dois lados da equação, reduziria a pressão por desmatamento ao gerar riqueza e fortaleceria um eixo de países democráticos.
O otimismo com o acordo Mercosul-UE dá lugar um tom ácido quando a conversa avança para a lei antidesmatamento do bloco europeu (EUDR, na sigla em inglês). Ele considera que a norma foi elaborada a partir de uma visão “muito arrogante” sobre o que é sustentabilidade, e pode vir a ser usada como instrumento de protecionismo.
“A ideia de que Bruxelas tenha a chave da sustentabilidade do mundo (…) é profundamente equivocada, derivada de um dos problemas que a Europa enfrenta hoje, que é acreditar que o mundo todo ainda é eurocêntrico”, afirma.
No entanto, ele reconhece a importância da “convergência valorativa” entre os países do continente e a América do Sul. E pontua que seria importante a Europa fortalecer sua independência frente aos Estados Unidos, crucial para um mundo multipolar equilibrado.
“Se é uma Europa atrelada a outro, e, no caso, o atrelamento é sempre com os Estados Unidos, já deixa de ser forte”, diz. “Para ser forte, precisa ser independente de fato, e essa é a aspiração que o Brasil tem em relação a como é que a Europa deveria se colocar.”
Questionado se Brasília deveria evitar alianças com líderes autocráticos, ele reconhece que o desafio global que se coloca hoje diante das democracias é “muito grande” e vai requerer uma “concertação de países que têm interesse em defender o modelo democrático”. Mas diz que o Brasil “não é um missionário da democracia” e mantém relações “muito amplas, profundas com países de regimes de naturezas diferentes”.
Ele critica ainda grandes países democráticos refratários a uma reforma da governança global – “o Brasil é defensor de modelos mais abertos e democráticos em tudo” – e a politização da defesa dos direitos humanos – “o chamado double standard, que é defender o direito internacional somente quando convém”.
Aos 72 anos, Jaguaribe já foi embaixador em Pequim e Londres e agora deve atuar no Itamaraty em Brasília até sua aposentadoria. Ele será substituído em Berlim por Rodrigo de Lima Baena Soares, atual embaixador brasileiro na Rússia.
Começo difícil com “arroubos retóricos” de Bolsonaro
Indicado para a embaixada de Berlim durante o governo Michel Temer, Jaguaribe assumiu o posto em fevereiro de 2019, um mês após a posse de Bolsonaro. Não foi um início tranquilo. Na campanha, Bolsonaro disse que poderia retirar o Brasil do Acordo de Paris e prometeu que daria uma guinada na política externa do Itamaraty.
“Quando cheguei aqui, havia uma mudança radical no Brasil – uma mudança malvista não apenas na Alemanha, mas praticamente na Europa inteira”, afirmou. Ele rememora que o governo Bolsonaro começou com uma retórica nas relações exteriores muito diversa da tradição do Itamaraty, em especial a política de não alinhamento.
“Uma das coisas peculiares era uma certa filiação, lembrando épocas pregressas não muito felizes, a interesses de outros países, particularmente um grande país da região”, afirma.
Logo começaram os atritos com políticos alemães. Em abril de 2019, Bolsonaro afirmou que o nazismo havia sido um movimento de esquerda, provocando reação de partidos do país europeu. Dois meses depois, Merkel disse que via com “grande preocupação” a situação de direitos humanos e de meio ambiente no Brasil, e suspendeu o repasse de verbas ao Fundo Amazônia. Bolsonaro reagiu dizendo que Berlim não iria mais “comprar a Amazônia” e poderia “fazer bom uso dessa grana, o Brasil não precisa disso”.
A ameaça de retirar o país do Acordo de Paris não se concretizou – segundo Jaguaribe, muito por pressão do agronegócio, que viu que teria prejuízo – e aos poucos a relação bilateral entre Brasil e Alemanha seguiu funcionando de alguma forma, apesar do isolamento internacional de Brasília. Ele aponta que isso ocorreu por diversos motivos.
O principal foi a “longa e densa história” de relações entre os dois países, que funciona como elemento de “união e confiança”. Uma “solidez” ancorada em uma miríade de interesses econômicos e de parcerias em diversos níveis que se impõe sobre questões conjunturais.
Além disso, “arroubos retóricos” de autoridades no governo Bolsonaro não tiveram impacto prático no dia a dia da atuação da embaixada. “Não havia uma política estruturada, eram devaneios de algumas pessoas (…) Afetou minha orientação para cá? Praticamente nada”, afirma.
Outro aspecto foi a “solidez institucional do Itamaraty”, que segundo ele funcionou como inibidor para transformar retórica em prática. Reportagens da imprensa brasileira relataram que, na gestão Bolsonaro, alguns diplomatas montaram redes informais para trocar informações e articular-se com o objetivo de evitar maiores danos à política externa brasileira.
Indagado pela DW, ele afirma desconhecer se houve algo do tipo em Berlim – “mas não há dúvida de que colegas conversavam e mantinham um diálogo a respeito de questões relevantes estruturais”. “O governo determina a política, mas sempre temos presente que, como funcionários de Estado, temos uma responsabilidade de estabilidade.”
Se na embaixada em Berlim ele relata que o impacto não foi tão grande, na representação em órgãos multilaterais, em especial nas sedes da ONU em Nova York e Genebra, o cenário foi diverso. Lá, o Brasil patrocinou mudanças de posição “a meu juízo completamente equivocadas”.
No governo Bolsonaro, Jaguaribe recebeu a visita da então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, “que foi muito bem”, do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que o surpreendeu positivamente, e outras visitas “que não foram tão exitosas” – a mais difícil, diz, foi a do então Meio Ambiente, Ricardo Salles, sem detalhar o motivo.
Após vitória de Lula, “todo mundo me chamou para dançar”
Os momentos complicados à frente da embaixada no governo Bolsonaro deram lugar a uma onda de otimismo de políticos alemães com o Brasil, desde a vitória eleitoral de Lula em outubro de 2022 até meados de 2023, em uma magnitude que ele diz nunca ter visto na sua carreira diplomática.
“Todas as lideranças centrais e mais elevadas do governo alemão fizeram visitas ao Brasil num espaço de seis meses”, afirma. O primeiro foi o presidente, Frank-Walter Steinmeier, seguido pelo chanceler federal Olaf Scholz, e os ministros da Cooperação e Desenvolvimento, da Economia e do chefe da Chancelaria, entre outras autoridades.
“Havia um conhecimento sólido dos protagonistas do novo governo, e isso gerou um clima de aproximação, entendimento, mesmo de entusiasmo, extraordinário”. Esse movimento foi coroado com a visita de Lula a Berlim em dezembro de 2023, e as primeiras consultas intergovernamentais de alto nível entre os dois países em oito anos.
Jaguaribe diz ter resumido a mudança de clima da seguinte forma a uma autoridade alemã, em tom de brincadeira: “Eu era o homem feio no baile, ninguém queria dançar comigo. Agora todo mundo me chama para dançar.”
Essa intensidade da relação bilateral no nível político perdeu força em seguida – “e nem poderia se manter, é impossível, não fazem nem com a França” – também em função de crises que ocuparam o então governo alemão em diversas frentes, envolto com os efeitos da guerra da Ucrânia, da inflação e da estagnação econômica. Houve também certa decepção na Alemanha com a posição de Lula sobre a guerra de agressão russa contra os ucranianos.
Mesmo assim, no final de 2024, a Alemanha fez um gesto “muito bem visto” no Brasil: unir-se à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza lançada na cúpula do G20 no Rio de Janeiro, cuja presidência rotativa estava nas mãos do Brasil e era uma prioridade para Lula.
A Alemanha foi o primeiro país do G7 a se juntar à iniciativa, somando esforços de uma aliança similar do G7, a Aliança Global para a Segurança Alimentar, o que fortaleceu o papel do G20 no tema, diz Jaguaribe.
Comércio “muito inferior à intensidade da relação entre os países”
A corrente de comércio – soma de exportações e importações – entre Brasil e Alemanha em 2024 foi de 20 bilhões de dólares, aproximando-se do melhor ano da série histórica, 2011, quando alcançou 24 bilhões de dólares.
A Alemanha teve a quarta maior corrente de comércio com o Brasil, atrás da China (158 bilhões de dólares), EUA (81 bilhões) e Argentina (27 bilhões), e à frente de Holanda e Espanha (ambas com 14 bilhões).
Mesmo assim, Jaguaribe considera os números atuais “pífios” e muito inferiores à “intensidade do relacionamento político e das convergências de interesses e de valores” entre os países.
“Há uma extraordinária multiplicidade de oportunidades reais de negócios relevantes para os dois países. É difícil encontrar uma complementariedade de atendimento, de fragilidades e de competências como a que a gente vê entre Brasil e Alemanha.”
Ele lembra que um dos irmãos Siemens foi ao Brasil já na década de 1860, para instalar a linha telegráfica entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre, e foi seguido por outras empresas alemães, como a Bayer, a BASF e bancos. Após a Segunda Guerra Mundial, o país europeu tornou-se um dos principais parceiros no processo de acelerada industrialização brasileira e fez de São Paulo a “maior cidade industrial alemã no mundo”, diz.
Essa relação esfriou após a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, na sua avaliação porque a Alemanha optou por dedicar mais recursos à reunificação do país e ao Leste Europeu – o que ele considera uma “boa política” à época, tendo em vista os interesses alemães.
No entanto, ele acredita que a perda de espaço da América Latina foi exagerada, em função da importância que a região poderia ter tanto para a Alemanha como para a Europa em geral.
“A Alemanha é uma powerhouse de competência produtiva e de geração de inovação, mas não tem dimensão geográfica, de recursos humanos, e mesmo em algumas instâncias tecnológicas, para bancar tudo sozinha e se manter na linha de frente da competitividade produtiva tecnológica e industrial. É preciso de parcerias-chaves”, afirma.
Jaguaribe diz ouvir com frequência em Berlim que a relação com o Brasil deve ser intensificada, mas não vê na prática uma “aceleração” significativa. Em parte, ele considera que isso ocorre por conta de “uma certa inquietação” sobre o futuro da indústria alemã – sob pressão crescente da China e do aumento dos custos de energia, e à espera do possível impacto de grandes pacotes de ampliação de gastos públicos e de alívio tributário do atual governo.
Sobre o resultado da balança comercial, que em 2024 foi deficitária para o Brasil em 8 bilhões de dólares, ele considera que a relevância da relação econômica entre os países “deriva muito mais da história dos investimentos alemães no Brasil do que da pauta comercial do momento”.
Acordo Mercosul-UE: “Chance de sair até 2026 é maior que a de não sair”
A melhor oportunidade para levar essa relação comercial a outro patamar, na opinião de Jaguaribe, seria a ratificação e entrada em vigor do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia. Somados, os 27 países do bloco europeu tiveram no ano passado uma corrente comercial com o Brasil de 95 bilhões de dólares, à frente dos Estados Unidos.
Negociado há mais de duas décadas, o acordo chegou a ser assinado pelos dois blocos em junho de 2019, no início do governo Bolsonaro, mas depois entrou em banho-maria e não avançou até sua efetiva implementação.
A Alemanha historicamente tem interesse no acordo com o Mercosul, assim como a Espanha e outros países europeus. A França é a maior opositora, em função da pressão do seu setor agrícola, e outros países, como a Áustria, também já se manifestaram contra em algumas oportunidades. Para entrar em vigor, é necessária a aprovação de 15 dos 27 países da UE, que representem ao menos 65% da população do bloco, e de uma maioria simples no Parlamento Europeu.
Apesar do tradicional apoio de Berlim, um dos motivos para o acordo ter perdido o ímpeto após a assinatura em 2019 foi, na avaliação de Jaguaribe, uma decisão da Alemanha, que presidiu o Conselho da União Europeia de julho a dezembro de 2020 e poderia ter usado essa posição para fazer avançar o texto.
Jaguaribe considera que Berlim à época colocou o pé no freio devido a preocupações de que o acordo poderia estimular o desmatamento, em um contexto de alta de desmate e queimadas na Amazônia, com Bolsonaro sinalizando que isso não era considerado um problema para seu governo.
Para o embaixador, foi um “erro estratégico” do governo Merkel, derivado de um “problema de narrativas”. “Apesar de todo o descaso que foi evidenciado, sobretudo retoricamente, pelo presidente e outras autoridades com relação à questão do meio ambiente, o Brasil continua sendo muito mais sustentável que praticamente qualquer país europeu”, afirma.
Ele lembra que, naquele momento, a ativista sueca Greta Thunberg estava em evidência, e chegou a se reunir pessoalmente com Merkel em agosto de 2020, com impacto na opinião pública europeia e alemã.
Jaguaribe é da opinião de que o acordo de livre comércio “não tem nada a ver” com ampliação do desmatamento. Ele considera que o “maior inimigo” da preservação ambiental é a pobreza, que gera demandas que não satisfeitas resvalam para a ilegalidade, e pontua que a maior parte do desmatamento ilegal ocorre em terras devolutas.
“Que o Brasil, a Alemanha e o resto do mundo tinham que se preocupar com o que vem a acontecer na área de meio ambiente no Brasil, não tenho dúvida, isso faz parte de algo global e é natural. Mas criar a confusão de que tinha um impacto direto, impulsionador, caso o acordo fosse firmado, é completamente equivocado”, afirma.
Ele considera que o acordo é “potencializador de geração legítima de meios econômicos para a região e, portanto, diminuidor do potencial de devastação”, e cita que tanto o ex-ministro alemão da Economia Robert Habeck como a ex-ministra alemã do Exterior Annalena Baerbock, ambos do Partido Verde, defenderam sua ratificação durante visitas ao Brasil.
Por outro lado, essa demora abriu espaço para novas negociações. A UE enviou uma side letter ao Mercosul exigindo novas salvaguardas ambientais, e Lula, em resposta, demandou novas salvaguardas para compras governamentais, desenvolvimento industrial e pequenas e médias empresa.
No final de 2024, o presidente brasileiro afirmou que o texto assinado em 2019 tinha condições “inaceitáveis” e que sua versão atual estava “bem diferente”. Qual é a probabilidade de o acordo sair do papel até o final do atual mandato de Lula? “A chance de que isso venha a ser feito é maior do que a chance de que não venha a ser feito”, estima Jaguaribe.
Lei antidesmatamento da UE tem visão “arrogante”
O entusiasmo com o acordo Mercosul-UE dá lugar um tom ácido quando a conversa avança para a lei antidesmatamento da UE (EUDR, na sigla em inglês). A partir de 2026, a norma exigirá que os exportadores de algumas commodities para o bloco apresentem provas de que os produtos não provêm de áreas desmatadas de 2021 em diante.
Jaguaribe avalia que, apesar de motivada por preocupações legítimas, a norma foi elaborada a partir de uma visão “muito arrogante” sobre o que é sustentabilidade, e pode vir a ser usada como um instrumento de protecionismo.
“A ideia de que Bruxelas tenha a chave da sustentabilidade do mundo, e possa expandir as preocupações centrais de sustentabilidade na Europa para o resto do mundo, é profundamente equivocada, derivada de um dos problemas que a Europa enfrenta hoje, que é acreditar que o mundo todo ainda é eurocêntrico”, afirma.
Ainda mais, pontua, diante dos “esforços exitosos” para reduzir o desmatamento no governo Lula. “O Brasil é vastamente mais sustentável do que a Europa, e o Brasil ser punido por insustentabilidade por uma região que tem o nível de insustentabilidade da Europa coloca dilemas diversos.”
Ele considera que a lei impõe dificuldades e custos adicionais, em especial aos pequenos produtores, e lembra que o Congresso brasileiro aprovou em abril a Lei da Reciprocidade Comercial – para responder às tarifas de importação impostas por Donald Trump, mas também tendo em vista a norma da UE sobre desmatamento.
Jaguaribe avalia que a aprovação da lei brasileira da reciprocidade foi uma medida acertada – mas espera que não seja necessário usá-la contra UE, e que aplicação da norma antidesmatamento do bloco europeu seja “muito cautelosa” para evitar esse tipo de problema.
“Se eu for usar critérios europeus, posso, por exemplo, dizer: qualquer país que tenha uma matriz elétrica que não seja 80% renovável não está sendo sustentável. E vou aplicar uma regra dizendo que esses países não podem exportar para o Brasil porque não têm uma matriz energética 80% sustentável. Isso é uma realidade brasileira, que é fácil para a gente fazer, mas não é fácil para outros países – e não é legítimo que eu coloque isso”, exemplifica.
“Ou posso fazer algo muito direcionado: qualquer país que não tenha pelo menos 20% de cobertura vegetal nativa preservada em qualquer propriedade produtiva não pode exportar para o Brasil. A Europa não consegue manter 4%, e vai fazer retaliações contra o Brasil a respeito disso?”, questiona.
Brasil tem interesse em uma Europa “forte e independente”
Se Jaguaribe não poupa críticas ao que considera uma postura europeia “arrogante” de prescrever regras a outras partes do mundo, por outro lado ele reconhece a importância da “convergência valorativa” entre os países do continente e a América do Sul. E pontua que seria importante a Europa fortalecer sua independência frente aos Estados Unidos, crucial para um mundo multipolar equilibrado.
“O mundo bipolar fica muito radicalizado. Eventualmente pode convir aos dois polos, mas os países que não são exatamente nem um nem outro se veem estrangulados nas suas opções. Países médios, mas que têm pretensão de serem dignos e autossuficientes e de terem capacidade de articulação internacional, ficam pressionados a adotarem políticas que não são exatamente aquelas que lhes convém, mas que convém à potência que está pressionado de um lado ou de outro”, afirma.
Uma das apostas do Brasil para fortalecer um mundo multipolar é o Brics, que realizou no início do mês uma cúpula no Rio e atraiu a ira de Trump.
Ele considera “muito difícil” conceber um mundo multipolar adequado sem que a Europa tenha um papel importante. “Para isso, precisa ser uma Europa forte, com capacidade própria, que tem a sua própria política. Se é uma Europa atrelada a outro, e, no caso, o atrelamento é sempre com os Estados Unidos, já deixa de ser forte”, diz. “Para ser forte, precisa ser independente de fato, e essa é a aspiração que o Brasil tem em relação a como é que a Europa deveria se colocar.”
Ele afirma que a América do Sul tem uma relação “mais tradicional” com a Europa tanto em investimentos como em comércio, mas que os europeus infelizmente “estão deixando de prestar atenção nisso”. “O Brasil não tem nada contra a Ásia, temos a melhor relação possível e vamos expandir onde a gente puder. Mas achamos que é sempre melhor ter mais equilíbrio, e onde há mais potencial para ampliação exponencial é o relacionamento Mercosul – União Europeia”, afirma.
Jaguaribe expressa que “gostaria muito” que a Europa não perdesse a condição de ser de certa forma uma referência para a América Latina, mas receia que “isso já está acontecendo”.
“Temos uma base conceitual, partindo de princípios formatados essencialmente na Europa, mas que na verdade são muito universais, porque são expressões de humanismo e do interesse dos povos em geral”, afirma. “Esses valores precisam ser sustentados, e um eixo europeu-latino-americano é um eixo muito forte disso”, afirma.
Enfrentar crise da democracia exige articulação, mas Brasil não é “missionário”
Diversas pesquisas apontam uma tendência global de recuo da democracia e da confiança nas instituições democráticas. E há um debate sobre se a democracia deve ser um aspecto relevante das relações externas, ou se as relações externas devem ser norteadas prioritariamente por interesses econômicos e políticos.
Essa questão surgiu, por exemplo, quando Lula decidiu ir a Moscou em maio para se encontrar com Vladimir Putin e participar do desfile militar que marcou o 80º aniversário da vitória do exército soviético sobre a Alemanha nazista. O evento foi usado por Putin para projetar poder, e o brasileiro foi um dos poucos líderes de países democráticos que acompanharam a cerimônia.
Jaguaribe considera que o desafio que se coloca diante das democracias é “muito grande” e vai requerer uma “concertação de países que têm interesse em defender o modelo democrático”. Mas afirma que “o Brasil não é um missionário da democracia – o Brasil tem relações muito amplas, profundas com países de regimes de naturezas diferentes”.
“Optamos pela democracia, e achamos que é melhor para o mundo como um todo, inclusive como gestão global”, apontando para a resistência de grandes países democráticos a apoiarem uma reforma da governança global. “O Brasil é defensor de modelos mais abertos e democráticos em tudo.”
Ele vê a democracia não apenas como um meio para chegar a uma sociedade mais justa e eficaz, mas um “fim em si próprio”, pois “maximiza o que o homem tem de melhor, que é a liberdade”. No entanto, é um modelo mais complexo, que exige a habilidade de “falar com todo mundo e reconhecer que o outro tem legitimidade”.
Esse modelo está ameaçado por várias frentes, como a dificuldade de ciclos eleitorais corresponderem aos ciclos de resolução de problemas, um problema “antigo”, hoje exacerbado pelo “empoderamento da ignorância facultado pela mídia social”.
“A mídia social faz com que a ignorância, que normalmente é mais contida, se espalhe por toda a parte. E a simplificação dos problemas é usada para fins políticos por alguns espertalhões”, afirma. “É preciso regular as mídias sociais. Com a inteligência artificial, as mentiras com aparência de verdade vão se multiplicar e, se não houver uma capacidade regulatória mínima, vai virar um problema insolúvel.”
Ele afirma que esses “problemas sérios” estão sendo enfrentados “com muita dificuldade” pela Europa, pelo Brasil e por outros países democráticos. Mas considera que eles precisam ser examinados com mais atenção, “tanto internamente como coletivamente, por países que têm interesse na preservação do modelo democrático”.
Solução de conflitos “deve passar pelo direito internacional”
Questionado sobre a atuação do Brasil em relação a conflitos contemporâneos, como a guerra de Israel contra o Hamas, a guerra da Rússia contra a Ucrânia e os ataques de Israel e dos Estados Unidos contra o Irã, Jaguaribe afirma que a preocupação de Brasília é a defesa do direito internacional e dos direitos humanos em todos os locais, e não “somente quando convém”.
Ele relata que, no seu período à frente da embaixada em Berlim, foi questionado diversas vezes se o Brasil não estava preocupado com a situação de direitos humanos, por exemplo, na Ucrânia. No início de 2023, Lula chegou a dizer que a Europa contribuía para a continuidade da guerra, e o líder brasileiro demorou a condenar a violação da integridade territorial do país – no início, sem mencionar a Rússia.
“Estamos tão preocupados com a situação de direitos humanos que não politizamos a questão, como vemos muitos países fazerem – o chamado double standard, que é defender o direito internacional somente quando convém”, afirma.
Ele cita que o Brasil denunciou a Rússia pela invasão da Ucrânia, que violou o direto internacional, assim como os Estados Unidos por bombardearem o Irã. E lembra que o Brasil se opõe ao armamento nuclear em qualquer lugar do mundo, sobretudo no Oriente Médio, mas que isso deve ser feito por meio do direito internacional e dos órgãos multilaterais, como a Agência Internacional de Energia Atômica. “A manipulação e o uso político desses instrumentos enfraquece esses instrumentos.”
“Direitos humanos é algo fundamental, e acreditamos na força multilateral de tratar essa matéria. Apesar de ser lenta, é a única que tem capacidade real de comprometer os atores e paulatinamente ir abrangendo e ampliando a sua capacidade de ação”, diz.