06/04/2023 - 13:01
O Monte Saint-Michel é um lugar de mistério que pode ser visto e sentido desde muito longe. Situado na foz do rio Couesnon, no golfo de Saint-Malo (costa da Normandia, no noroeste da França), o monte é uma quase ilha a fascinar o olhar de quem dele se aproxima. Pouco a pouco seus contornos vão-se definindo na base do monte, um povoado medieval; mais acima, há um enorme mosteiro beneditino que se assemelha a um castelo, encimado por uma belíssima abadia gótica.
O Monte Saint-Michel ilustra à perfeição o simbolismo universal da montanha. Todos os sistemas religiosos e mitológicos veem as montanhas como lugares carregados de sacralidade. Ponte de ligação entre o céu e a terra e capaz de atingir misteriosas profundezas a partir de sua base, a montanha representa um eixo vertical que articula os três níveis do mundo: o celeste, o terrestre e o mundo inferior.
Sendo uma coordenada vertical, a montanha é o eixo, o centro do mundo, ao redor do qual a criação se organiza; ela é também uma imagem reduzida do planeta. Esse microcosmo constitui um mundo em si mesmo, completo e perfeito; é um símbolo da ordem e do equilíbrio. Ao redor dele se agitam as forças imprevisíveis, desordenadas e perigosas do caos. Ao desenhar sua silhueta numa paisagem em perpétua transformação, onde as areias perigosas, o mar incontrolável e os frequentes nevoeiros podem ser armadilhas mortais, o Monte Saint-Michel torna imediatamente tangível a realidade daquele arquétipo.
Enquanto eixo vertical do mundo, a montanha é também a passagem pela qual se estabelece a comunicação entre o mundo de baixo e o do alto. As manifestações do arcanjo que (de acordo com relatos recolhidos ao longo dos séculos) ali ocorreram constituem o aspecto descendente desse canal de comunicação. No sentido ascendente, o monte é entendido como o lugar privilegiado onde a alma pode subir às alturas celestes.
Mistérios insondáveis
Desde tempos pré-cristãos o Monte Saint-Michel é considerado um lugar onde são percebidos mistérios de um mundo que nos ultrapassa. Os celtas o associavam a uma mítica “Ilha dos Mortos”, onde os espíritos se reuniam após deixar o mundo dos vivos. A ideia sobreviveu nos tempos do cristianismo, e um texto católico do século 11, “Revelações da Igreja de Saint-Michel”, descreve: “(…) este lugar é chamado Tumba pelos habitantes. Com efeito, ele emerge acima da praia como uma tumba”…
Vários dos mitos e lendas recolhidos pelos folcloristas sobre o monte falam de sua relação com a herança céltica. Num raio de 40 quilômetros, diversos menires e blocos rochosos são vistos tradicionalmente como pedras abandonadas pelo diabo, por fadas ou outros entes sobrenaturais durante o surgimento do monte. Muitas tradições falam também de saltos gigantescos, dados por criaturas lendárias e que deixaram nas pedras as marcas de pés (na verdade, cavidades produzidas pela erosão). Uma dessas marcas, no vizinho Monte Dol, é atribuída ao pé do próprio São Miguel, que dali, com um salto, chegou ao cume do monte que leva seu nome.
O Monte Saint-Michel nunca foi visto como um lugar ordinário. Ele sobrepõe imagens míticas e simbólicas que o definem como “outro mundo”, um universo regido por leis que escapam aos limites estreitos da nossa percepção terrestre. Por isso, até hoje, época do turismo de massa, o acesso a esse rochedo oferece a garantia de uma experiência diferente e superior da existência. Todo o complexo geológico-arquitetônico do monte pode ser entendido como o lugar preferencial de acesso aos mistérios iniciáticos do arcanjo Miguel. Um culto que integra as raízes da doutrina cristã como caminho espiritual e que, na verdade, antecede o próprio cristianismo.
A tradição dos caldeus, milênios antes de Cristo, conhecia sete espíritos celestes associados aos planetas. Os arcanjos correspondem a esses planetas, e Miguel estava relacionado a Mercúrio. A Bíblia integrou a seguir a figura flamejante desse Anjo de Luz, a quem foi atribuído um papel central de chefe das milícias celestes, o vencedor da Besta no Apocalipse de São João.
Condução de almas
Desde a fundação do primeiro núcleo monástico no local, no século 8, o monte tornou-se um dos principais locais de peregrinação dos católicos europeus. A explicação para esse interesse, segundo Marc Déceneux, autor de Monte Saint-Michel – História Sagrada e Simbólica, talvez esteja vinculada às angústias ligadas ao mistério dos fins últimos da existência do homem e do mundo. O arcanjo é, na verdade, o “psicopompo”, o condutor de almas – no cancioneiro medieval A Canção de Rolando, São Miguel em pessoa vem recolher a alma do paladino agonizante para levá-la ao paraíso. Ele exerce também o papel de “psicostase”, o pesador de almas, aquele que avalia na sua balança a diferença entre o peso das boas e das más ações cometidas. Como se não bastasse, Miguel é ainda o “prepositus paradisi”, aquele que guarda as portas do Paraíso.
Antes de 1879, só se podia ir ao Monte Saint-Michel durante a maré baixa, quando o recuo das águas deixava aflorar uma extensa área de areias brancas. Se a estada demorasse, o visitante corria o risco de ficar ilhado. Depois disso, a construção de pontes – a última das quais inaugurada em 2014 – garantiu uma visitação imune ao vaivém das marés.
Os turistas caminham até um grande pórtico medieval, a Porta do Rei, e penetram de imediato na vila. Existe apenas uma rua estreita, com 200 metros de extensão, ladeada por casarões de dois e três andares, com estrutura de madeira aparente e alvenaria, muitos deles construídos na Idade Média. Toda a vida mundana do monte acontece ali: lojas de suvenires, correio, banco e vários hotéis, tavernas e restaurantes onde se serve a fantástica culinária da Normandia, à base de peixes, patos, gansos e cordeiros. Nessa rua também ficam a igreja paroquial e outro minimosteiro beneditino, onde vive hoje a comunidade monástica local.
Coroa no rochedo
A rua chega às escadarias que levam ao portal de entrada do antigo mosteiro, a 150 metros de altura. Fortificado no fim do século 13 pelo abade Pierre Le Roy, esse mosteiro parece uma imensa coroa posta diretamente sobre o cume do rochedo. O conjunto assemelha-se a um castelo medieval e faz lembrar que as abadias católicas eram senhorias, e que o abade era o senhor.
Uma visita à abadia, hoje convertida em museu, deve incluir as criptas subterrâneas, atravessando a igreja de Nossa Senhora Sob a Terra, onde os monges do passado viviam a experiência subjetiva da morte simbólica e da estada nos infernos. Na parte média do complexo há um conjunto de edifícios que, por sua beleza arquitetônica, foi chamado de “A Maravilha” ainda na Idade Média. Ali se desenrolava o cotidiano de centenas de monges nos tempos medievais, em escritórios, salas de recepção, biblioteca, salas de estudos, dormitórios, dispensas, cozinhas e refeitórios.
Nesse setor também fica o claustro, uma das obras-primas da arquitetura medieval francesa. De formato quadrado, ele tem quatro amplas galerias por onde os monges caminhavam em prece e meditação. No centro há um jardim com plantas verdes e flores singelas, organizado com requintada simplicidade. Separando o jardim das galerias, longas fileiras de colunas duplas esculpidas quebram a dureza dos desenhos quadrados.
A igreja no topo da abadia foi erguida no estilo conhecido como “gótico flamejante”: altíssima e estreita, para criar a sensação de extrema verticalidade. Exatamente no centro do templo, sob a agulha, há uma grande estátua dourada de São Miguel.
Não há tristeza nos labirintos do mosteiro e da abadia do Monte Saint-Michel. Ao contrário, tudo é leve e convida a um estado meditativo simples e despretensioso. O estado que se espera quando se está sob as asas imensas e acolhedoras do arcanjo Miguel.
Protetor da França
O aspecto guerreiro assegurou ao arcanjo Miguel um grande respeito nas dinastias militares e reais da Europa, e já no século 4 o imperador Constantino lhe dedicou uma igreja em Constantinopla. Do mundo bizantino, o culto a ele chegou à Itália e à Gália; nesta última, uma igreja foi erguida em 505 em Lyon para homenageá-lo. A partir daí, mais e mais os príncipes franceses manifestaram grande veneração pelo arcanjo.
Carlos Magno consagrou seu império a São Miguel, que seria patrono da França até o governo de Luís XIII, o qual decidiu consagrar seu reinado à Virgem. Mas a resistência inabalável do Monte Saint-Michel aos ingleses durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) exaltaria ainda mais o caráter nacional do culto prestado ao príncipe das milícias celestes. O arcanjo recuperaria então seu lugar de protetor máximo da França.