Fome intencional tem sido cada vez mais usada como arma. Situação em Gaza e no Sudão chamou a atenção para o sofrimento de civis. No entanto, nunca houve condenação em tribunais internacionais sobre tipo de crime.Os apelos para julgar a fome como crime de guerra em diversos dos atuais conflitos estão se tornando mais frequentes e ganhando força. “A fome é uma arma que está sendo usada em todo o mundo no momento. Mas isso tem que acabar, vai contra o direito internacional”, afirmou Shayna Lewis, conselheira sênior para o Sudão do grupo americano Prevenção e Fim das Atrocidades em Massa (Paema).

Lewis falava sobre a situação na cidade sudanesa de El Fasher, com 30 mil habitantes e que está sitiada há um ano, situação que gerou a escassez de comida. “É um crime internacional e precisa ser julgado como tal”, destacou.

Grupos de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW), fizeram comentários semelhantes sobre o bloqueio israelense à entrada de ajuda e alimentos na Faixa de Gaza.

“Israel está matando Gaza de fome. É genocídio. É crime contra a humanidade. É um crime de guerra”, afirmou Michael Fakhri, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, ao jornal britânico The Guardian na semana passada.

De acordo com especialistas, os crescentes apelos para julgar a fome de civis como crime de guerra ocorre devido ao aumento da fome causada por conflitos. Durante a primeira década deste século, houve poucas situações desse tipo, segundo um relatório da Fundação Mundial da Paz (WPF, na sigla em inglês), mas isso mudou recentemente.

“Esse é um fenômeno antigo, que é utilizado há séculos em conflitos”, afirma Rebecca Bakos Blumenthal, consultora jurídica do projeto Responsabilização pela Fome, da fundação jurídica holandesa Compliance de Direitos Humanos (GRC). Segundo a especialista, essa tática ressurgiu depois de 2015.

Fome como arma de guerra

Na última década, a fome foi registrada em conflitos na Nigéria, Somália, Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iêmen. Especialistas em segurança alimentar avaliam que os ataques russos à agricultura ucraniana também podem serem vistos como tentativas criminosas de transformar alimentos em armas. Eles argumentam ainda que houve um aumento deste tipo de crime de guerra.

“Mesmo com a melhoria da segurança alimentar global, incidentes de fome estão aumentando”, ressalta Alex de Waal, professor na Universidade Tufts, nos EUA, e diretor de pesquisa sobre fome em massa na WPF. “Isso mostra que a segurança alimentar global é mais volátil e desigual. Isso é consistente com o uso da fome como arma”.

A retenção deliberada de comida e itens essenciais para a sobrevivência de civis é considerada um crime de guerra por muitos países e também em várias iterações do direito internacional, como a Convenção de Genebra, que estabeleceu normas para o direito humanitário internacional, e Estatuto de Roma, aplicado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI).

Apesar dessa classificação, até agora, ninguém que usou essa tática em um conflito foi levado a julgamento. O crime de guerra de fome nunca foi julgado em uma corte internacional isoladamente, somente como uma da parte de acusação em cerca de 20 outros casos de crime de guerra.

O fato de civis passarem fome em um conflito, não significa automaticamente que um crime foi cometido. “Uma das questões jurídicas é a intenção. O crime de guerra de fome necessita que o perpetrador aja como a intenção disso”, afirma de Waal.

A fome ocorre a longo prazo, pontua de Waal, e alguns juristas argumentam que é necessário provar que o perpetrador teve desde o início, por exemplo, de um bloqueio ou cerco a intenção de matar de fome civis. A maioria dos especialistas, porém, defende uma “intenção indireta”, explica. Ou seja, é claro que essa situação ocorrerá “no curso normal dos eventos”, e o agressor sabe disso, tendo oportunidades de prevenir que civis passem fome, mas não o fez.

Outra questão para casos envolvendo a fome é a falta de precedentes, além da definição de quais tribunais nacionais e internacionais teriam jurisdição sobre os supostos crimes de guerra.

Mudança de perspectiva

Até há alguns anos, a fome era vista como uma questão de desenvolvimento ou humanitária, afirmou Blumenthal, da GRC. Mas agora está sendo dada mais atenção aos aspectos criminais. “Trabalho nessa questão há alguns anos e essas coisas andam lentamente”, conta Blumenthal, que se dedica ao tema desde 2020. “Acredito, porém, que a situação está mudando e que algumas medidas relevantes foram tomadas nos últimos dez anos”.

Em 2018, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que condenou a fome de civis como método de guerra. Em 2019, alterações foram feitas no Estatuto de Roma, tornando a fome um crime de guerra também em conflitos armados locais, em vez de apenas internacionais.

Houve inquéritos da ONU sobre conflitos no Sudão do Sul e na região do Tigré, na Etiópia, focando especificamente na questão da fome como crime de guerra, acrescenta Blumenthal.

“Estamos vendo mais organizações internacionais e locais, juntamente com mecanismos de responsabilização, denunciando isso e certos exemplos marcantes, como no caso de Gaza hoje, ampliaram a conscientização sobre esse crime”, ressalta a especialista.

Blumenthal destaca que os mandados de prisão emitidos pelo TPI contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ex-ministro israelense de Defesa Yoav Gallant em novembro de 2024 são um “marco histórico” por mencionar especificamente a fome como um crime de guerra. Foi a primeira vez que mandados destacam a fome como um crime isolado. Ela acrescenta que a corte possui ainda uma investigação aberta sobre o Sudão.

“A questão, sem dúvida, ganhou atenção nos últimos dez anos. Todas as estruturas legais estão em vigor. O que falta é vontade política para agir”, avalia de Waal.

Criminosos condenados?

De Waal pontua que ainda há desafios jurisdicionais, mas ele está confiante de que em muitos casos é possível haver condenações. “Basta levar o acusado ao tribunal”.

Blumenthal concorda. “Há equívocos sobre isso e muitos pensam que a fome é uma parte inevitável da guerra. Mas, durante nossas investigações aprofundadas, é surpreendente a rapidez com que fica claro que, na verdade, esses padrões são muito acentuados e em muitas situações é possível discernir uma estratégia deliberada”.

Com cautela, Blumenthal está otimista de que aqueles que usaram a fome de civis deliberadamente como arma de guerra enfrentarão em breve a justiça. “Essa é certamente a esperança. É para isso que estamos trabalhando”.