Suspensão temporária de moratória que proibia venda de soja originária de áreas desmatadas é vista como retrocesso e resultado de pressão de ala retrógrada do agro brasileiro. Exportadoras dizem que vão recorrer.A partir de agora, a soja cultivada em área desmatada na Amazônia poderá chegar com mais facilidade ao mercado. Isso porque o acordo voluntário criado há duas décadas que barrava este tipo de comércio, conhecido como “moratória da soja”, foi suspenso temporariamente. A decisão foi do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Segundo nota divulgada nesta terça-feira (19/08), um inquérito administrativo foi instaurado para investigar uma possível formação de cartel de compra no mercado nacional por parte de empresas exportadoras de soja. Até que o órgão chegue a uma conclusão – o que pode levar meses – a moratória da soja fica suspensa.

O processo foi instaurado de forma sigilosa em agosto de 2024, a pedido da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados. O colegiado argumentou que empresas exportadoras, responsáveis por 80% da comercialização da soja brasileira, estariam “combinando não adquirirem soja de produtores que tivessem qualquer parcela de sua área de plantação advinda de desmatamento após o ano de 2008”, ano em que a moratória passou a valer.

A Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT), comemorou. Em franca campanha desde 2018 contra o acordo voluntário, a entidade alegava que a moratória causava restrição de mercado, interferia na livre iniciativa e liberdade dos produtores com pretexto de frear o desmatamento ilegal.

Para as organizações da sociedade civil que participaram do início da moratória, o posicionamento do Cade é visto como um retrocesso que deve gerar impactos negativos. Analisas apontam que o comprador internacional não terá mais segurança de que o produto é livre de desmatamento, o que pode levar muitos a procurar fornecedores de outros países.

“Com a moratória, a soja brasileira há muitos anos deixou de ter uma imagem de ser um produto que contribui para a destruição da floresta. E esta decisão coloca em xeque esta imagem do agro brasileiro e impacta o mercado como todo”, disse à DW Maurício Voivodic, diretor-executivo do braço da ONG WWF no Brasil.

Pressão de ala retrógrada do agronegócio

Ainda não há uma conclusão se a moratória é um problema do ponto de vista concorrencial.

O acordo foi firmado em julho de 2006 entre a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a Associação Nacional de Exportadores de Cereais (Anec), o governo federal e a sociedade civil após forte pressão social.

No início daquela década, a ONG Greenpeace fazia uma forte campanha internacional mostrando as conexões entre o desmatamento e o avanço das plantações de soja.

Em 2006, o relatório Comendo a Amazônia detalhou como a soja cultivada em fazendas dentro do bioma era exportada para a Europa e virava ração de frango que, por sua vez, era comprado pela rede de fast food McDonald’s.

Paralelamente, a ONG WWF produziu vários documentos que analisavam os efeitos do cultivo de soja no Cerrado. Uma conferência à época capitaneada pela organização reuniu produtores, indígenas, ambientalistas e membros da indústria e deu um passo importante rumo aoacordo voluntário. Diante da repercussão e da opinião pública, as exportadoras responderam e ajudaram a firmar a moratória.

A Abiove disse ter recebido a decisão do Cade com surpresa. Por meio de nota, a entidade disse que tomará as medidas cabíveis para a defesa do pacto, “além de colaborar de forma plena e transparente com as autoridades competentes, prestando todos os esclarecimentos necessários para o devido andamento do processo”.

Para Voivodic, da WWF, a derrubada da moratória foi resultado de pressão política de uma parcela de produtores minoritários, ligados a associações mais retrógradas do agronegócio.

“Eles querem defender seu direito de continuar destruindo a floresta para sempre e lucrar com isso. A origem desse processo todo é essa ala do agro que é negacionista, não entende os impactos das mudanças climáticas, não percebe que ao continuar desmatando vai prejudicar a própria produção rural”, disse Voivodic.

Mais desmatamento

Em Mato Grosso, o presidente da Aprosoja, Lucas Costa Beber, argumentou que a moratória é um “acordo comercial que não beneficia” a categoria e que “restringe os produtores de crescerem”.

O estado, campeão na exportação de soja, também é o segundo no ranking de desmatamento da Amazônia, atrás apenas do Pará, segundo o sistema de monitoramento via satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Para Cristiane Mazzetti, coordenadora de florestas do Greenpeace Brasil, a decisão do Cade envia um sinal ruim, servindo de incentivo para os produtores que queriam desmatar, mas eram freados pela moratória e temor de restrições na comercialização do produto.

“Se o processo levar ao fim do acordo, corremos um risco de a soja voltar a ser um grande vetor de desmatamento na Amazônia. Vemos que tem uma demanda crescente pela commodity e a tendência é que o cultivo volte a avançar com força na floresta”, analisa, Mazzetti, pontuando que a expansão do cultivo, até então, estava direcionada para áreas já degradadas.

Voivodic, do WWF Brasil, também vê a possibilidade de que alguns produtores rurais na Amazônia entendam isso como um sinal verde para desmatar. “Será um tiro no pé, porque eles podem começar a cortar floresta para plantar soja. E isso terá um grande e potencial dano na imagem do mercado brasileiro globalmente”, diz.

Dados divulgados pela Abiove mostram que, entre 2002 e 2008, os municípios com produção de soja na Amazônia desmatavam em média 10,6 mil km²/ano. Depois da moratória, a taxa caiu para cerca de 3 mil km²/ano.

“É consenso de que, em todos esses anos, o pacto contribuiu para a queda do desmatamento associado à soja, uma vez que apenas 3% da soja plantada no bioma está em áreas desmatadas após 2008. E não foram comercializados grãos provenientes dessas áreas”, afirma a associação em seu site.

Até então, o monitoramento da moratória usava imagens de satélites registradas ao longo de cada safra para atestar a inexistência de desmatamento. A base de dados do Inpe também constava como fonte e informação.

O futuro da moratória

Marcelo Winter, advogado e professor do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA), diz que a suspensão momentânea não impede que as empresas estabeleçam critérios individuais para aquisição de soja.

“A decisão impede ações coletivas, como trocas de informações, compartilhamento de relatórios. Mas os signatários podem ter uma conduta individualizada de seleção de seus fornecedores”, diz Winter à DW, lembrando que o Cade estabeleceu multa a quem descumprir a medida.

Para o professor, a decisão do conselho deve ter menos relevância, já que ela vem meses antes da lei antidesmatamento da União Europeia entrar em vigor, o que está previsto para 2026. Segundo essa legislação, os países do bloco europeu ficam impedidos de comprar produtos que venham de áreas desmatadas na Amazônia de 2021 em diante.

Nathalia Nascimento, professora do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP), afirma que é inquestionável o papel da moratória na redução do desmatamento naquele contexto em que ela foi criada.

Era um momento de alta taxa de destruição florestal, em que o Brasil precisava de um mecanismo de mercado para colaborar com todas as ações governamentais que estavam sendo criadas, como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).

“Havia demandas de atualização, de adaptação do pacto com o decorrer do tempo. Principalmente por ele não permitir desmatamento mesmo quando o produtor tinha direito a fazer a supressão florestal em sua propriedade dentro do Código Florestal. Mas não é extinguindo o mecanismo que se resolve o problema”, disse Nascimento à DW.

Para ela, o tom de ameaça e punição da decisão do Cade contra as entidades que estavam fazendo um trabalho importante é motivo de preocupação. “Isso faz parte de movimento triste de desmantelar a legislação ambiental e os mecanismos de proteção de florestas. É uma decisão atrasada, principalmente neste momento de emergência climática”, diz a pesquisadora que é natural de Belém, sede da próxima Conferência do Clima da ONU.