09/09/2025 - 16:46
Montadora sofreu maior indenização já imposta em caso de escravidão moderna no Brasil pela forma que conduziu antiga fazenda. À DW, ex-funcionários relatam condições degradantes. “Nós bebíamos a mesma água que o gado”Raul Batista de Souza deixou a Fazenda Volkswagen, em Santana do Araguaia (PA), em 1986, após cerca de quatro meses trabalhando em condições degradantes e sem receber salários. Mas não conseguiu escapar da servidão – ele estava em um grupo transferido para outra fazenda. “Foi onde a gente descobriu que tinha sido vendido”, contou à DW.
Depoimentos como o de Souza, de 67 anos, foram fundamentais para a condenação da Volkswagen por exploração de trabalho análogo à escravidão pela Justiça do Trabalho do Pará no fim de agosto. A sentença se refere aos crimes cometidos entre 1974 e 1986 na Fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida como Fazenda Volkswagenpor ser propriedade da montadora.
O juiz Otavio Bruno da Silva Ferreira reconheceu a existência de todas as modalidades legais do trabalho análogo à escravidão: restrição da locomoção; servidão por dívida; trabalhos forçados; e jornadas exaustivas e condições degradantes. E condenou a montadora a pagar a maior indenização coletiva em caso de escravidão moderna: R$ 165 milhões.
O empreendimento de extração de madeira e criação de gado teve apoio financeiro da Ditadura Militar e se desenvolveu em um contexto de ocupação e exploração da Amazônia. Ficava em Santana do Araguaia, no sudeste do Pará.
“Trata-se de uma decisão histórica que nós, no Ministério Público do Trabalho (MPT), festejamos muito, porque ela trata de uma reparação a uma grave violação aos direitos humanos”, avaliou Rafael Garcia Rodrigues, que coordenou as investigações e foi um dos procuradores que apresentou a denúncia.
A empresa também foi condenada a reconhecer os crimes. “Mesmo que tais violências tenham sido praticadas há tantos anos, no caso, há mais de 40 anos, é reconhecido que graves violações aos direitos humanos são imprescritíveis, estão sujeitas a serem reparadas, a serem reconhecidas, mesmo anos depois de sua prática”, afirmou o procurador.
A empresa vai recorrer da condenação. Em nota, negou as acusações. “A Volkswagen do Brasil refuta e rejeita categoricamente todas as alegações apresentadas na ação movida pelo Ministério Público sobre a investigação da Fazenda Vale do Rio Cristalino. A empresa permanece firme na busca por justiça, alicerçada na segurança jurídica e na confiança à imparcialidade do Sistema Jurídico Brasileiro.”
Aliciamento e servidão por dívida
O depoimento de Raul Batista de Souza, segundo o juiz, contribuiu decisivamente para a materialidade dos fatos. À DW, o trabalhador disse que se arrepiou com a decisão. “É muito difícil lembrar daqueles momentos, mas a gente está acreditando que está sendo feita a justiça.”
Com 27 anos, morando em Monte do Carmo (TO), na época pertencente a Goiás, Souza precisava de trabalho. Ele, dois irmãos e um grupo de homens com baixa escolaridade foram aliciados por um gato, como eram chamadas as pessoas contratadas pela fazenda que recrutavam os trabalhadores com promessas de boas condições de trabalho e salário.
Na fazenda, ele fazia a roçagem, cortando a vegetação mais baixa. Para isso, os trabalhadores precisavam comprar todo o material, como foice, botina, comida e até as lonas para construírem seus barracos. Os produtos eram adquiridos em uma cantina, com preços superfaturados.
Era uma situação degradante, relatou Souza. “Nós bebíamos a mesma água que o gado. Antes do gado descer pro córrego nós pegávamos a água. Apanhava para beber, cozinhar, tomar banho.”
José Ribamar Viana Nunes, de 60 anos, tinha 17 quando chegou à fazenda na caçamba de um caminhão. Passou pela guarita, onde havia a logomarca da Volkswagen, e foi levado para uma área afastada da sede. Na primeira noite, viu um trabalhador amarrado a uma rede.
Após roçarem um lote, seu grupo receberia pelo trabalho, descontando o que tinham comprado na cantina. Cerca de um mês e meio depois, com jornadas exaustivas, foram acertar as contas. “Estávamos devendo pra ele” contou, referindo-se a Chicó, apelido de Francisco Andrade Chagas, um dos gatos que atuavam na fazenda.
A lógica se repetia após cada acerto. Certo dia, receberam uma compensação. “Como vocês são uns meninos muito bons, vou dar uma latinha de goiabada para vocês. Aquela época nós era tudo moleque. Aí nós pegamos aquela lata de goiabada, partiu no meio logo, todo mundo já comeu rapidinho.”
Satisfação e frustração
A sentença gerou uma mistura de satisfação e frustração em Ricardo Rezende Figueira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC). Além de pesquisar o tema, suas ações foram determinantes para a condenação.
Figueira morava em Conceição do Araguaia (PA) e coordenava a Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região, incluindo o local onde estava a fazenda. Junto com outras lideranças da sociedade civil e sindicalistas, foi colhendo depoimentos, muitos deles registrados em cartórios e em delegacias. Em 1983, denunciou o caso em uma coletiva de imprensa em Brasília.
As denúncias repercutiram pouco no Brasil, mas ganharam destaque na Alemanha, segundo Figueira. E uma comissão formada por parlamentares, sindicalistas e jornalistas foi conferir as denúncias na fazenda. Mas não houve um processo judicial na época.
Já em 2019, o professor entregou uma vasta documentação ao Ministério Público do Trabalho. Os procuradores iniciaram então uma investigação e, em dezembro de 2024, entraram com uma ação civil pública na Justiça do Trabalho, que culminou com a condenação da Volkswagen.
A satisfação de Rezende está ligada à própria condenação. Na sua análise, embora as instituições brasileiras tenham sido omissas na época, as denúncias realizadas, as provas recolhidas e a mobilização da sociedade civil surtiram efeito quando a conjuntura mudou. “A gente está num processo de democracia, tem uma nova leva de procuradores mais atentos ao problema. A escravidão entrou na pauta.”
A frustração se refere à demora na sentença, à possibilidade de recursos e às pessoas que morreram neste período. Nenhuma reparação é capaz de substituir a dor, o sofrimento. E também temos que lembrar que pessoas desapareceram, há denúncias de pessoas que foram assassinadas ou foram abandonadas doentes.”
A decisão representa um avanço na reparação de crimes cometidos durante a Ditadura Militar, não apenas pelo Estado, mas também por empresas como a Volkswagen. A análise é de Pedro Campos, professor de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador da relação entre o regime e as empresas.
“A decisão é muito positiva. Temos que avançar justamente em relação a reparação dos crimes cometidos durante a ditadura. E não só os crimes cometidos pelo Estado, no sentido estrito, pelos agentes estatais como policiais, militares que torturaram, que mataram, que desapareceram pessoas, que exilaram, que censuraram, mas também pelas empresas. Grandes grupos econômicos, como a Volkswagen, estavam diretamente associados à ditadura ”
A relação da Volkswagen com a Ditadura Militar já tinha sido objeto de outra investigação. Em 2020, a empresa assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPT e com os ministérios públicos Federal e de São Paulo se comprometendo a destinar R$ 36,3 milhões a ex-trabalhadores presos, perseguidos ou torturados em sua fábrica em São Bernardo do Campo (SP).
Fuga e futebol
Os trabalhadores eram proibidos de deixar a fazenda, mesmo doentes e com malária, segundo diversos depoimentos. Havia vigilantes, chamados de pistoleiros, que circulavam portando espingardas, revólveres e facões. Há relatos de pessoas que foram espancadas ao tentarem fugir.
Quando o grupo de Raul Batista de Souza pediu para deixar a fazenda, eles foram “enrolados” por alguns dias. “Falaram que iam arranjar um bom serviço para nós ganhar dinheiro. Foi o tempo que eles nos venderam para outro gato”, contou.
Mas só descobriram que tinham sido vendidos para a Fazenda São Geraldo quando também quiseram ir embora daquele lugar. E ouviram: “Vocês só vão embora quando pagar a conta [porque] nós compramos vocês”
Souza estava separado de seus irmãos e decidiu fugir. Passou nove dias na mata, tomando água e comendo alguns animais. “Ainda bem que na hora que eu saí eu lembrei de pegar um pacote de sal”, recordou. Quando saiu da mata, ainda precisou trabalhar alguns dias em outra fazenda para juntar dinheiro e conseguir ir embora.
Já José Ribamar Viana Nunes só deixou a fazenda graças aos seus companheiros. Eles precisavam se apresentar ao exército e foram liberados após insistirem. Mas como o jovem não era alistado, não queriam deixá-lo ir. “Se ele não for, nós não vamos” disse um amigo dele, conseguindo sua liberação.
Passado tanto tempo, Nunes ainda lembra de uma promessa que ouviu em Canabrava do Norte (MT) quando foi aliciado: eles poderiam jogar futebol na fazenda. A sede contava com escritórios, escola, serviço de saúde e até campo de futebol, mas a estrutura era destinada para diretores e para empregados diretos da Volkswagen.
O local onde Nunes ficava era a cerca de 80 quilômetros da sede. “Levei chuteiras”, contou. “Mas nunca fomos no campo.”