Caso de aluna de 11 anos agredida em Pernambuco é reflexo de problemas estruturais da sociedade, além de explicitar a adultização das crianças.A estudante Alícia Valentina Lima dos Santos Silva, de 11 anos, morreu após ser espancada, por quatro meninos e uma menina, no banheiro de uma escola no interior de Pernambuco. Segundo o laudo do Instituto Médico Legal (IML), a causa da morte foi traumatismo craniano.

No boletim de ocorrência registrado pela família da vítima com base no relato de outra aluna da escola consta que Alícia Valentina foi abordada pelos agressores, que começaram a lhe dar tapas e socos, principalmente na região da cabeça. O motivo teria sido a negativa da menina em ‘ficar’, ou seja, dar um beijo, em um menino da escola, que teria sido o principal autor das agressões.

A morte de Alícia Valentina escancara um cenário de violência no ambiente escolar que afeta principalmente as meninas. Dados do Observatório de Violências nas Escolas apontam que 13.115 casos de violência interpessoal foram registrados no ambiente escolar em 2023, data do último levantamento divulgado.

A maior parte dos casos notificados foi de violência física, com 6.558 casos (50% do total), seguido de violência psicológica ou moral, com 3.123 casos (23,8% do total), e violência sexual, 3.033 vítimas (23,1% dos casos). A maioria das vítimas (60,6%) é do sexo feminino, e em 35,9% dos casos o agressor era um amigo ou conhecido da vítima.

Outros 2,2 mil casos envolveram violência autoprovocada como automutilação, autopunição, ideação suicida, tentativas de suicídio e suicídios. Os números abrangem estudantes, professores e outros membros da comunidade escolar.

Reflexo de problema estrutural

Especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em afirmar que, embora a violência no ambiente escolar ocorra dentro dos muros das instituições de ensino, o problema extrapola essa fronteira e é reflexo de problemas estruturais da sociedade.

“A escola não é um espaço isolado e os problemas enfrentados pela sociedade se refletem também nesse ambiente. Para combater essa violência é necessário envolver toda a sociedade, as famílias, o sistema de segurança pública e o educacional”, diz Gabriel Salgado, gerente de Educação do Instituto Alana, organização sem fins lucrativos que atua na defesa de crianças e adolescentes.

“É necessário incluir a cultura de paz no planejamento educacional. E que esse planejamento não olhe apenas para o desenvolvimento cognitivo do aluno, mas também para o social”, acrescenta.

No caso de Alícia Valentina, até o momento o que se sabe é que a violência pode ter sido motivada pela recusa da menina em ‘ficar’ com um dos agressores. Situação que para os especialistas deixa explícito o machismo estrutural e a adultização das crianças, uma vez que a vítima tinha apenas 11 anos. A polícia não informou a idade dos agressores, mas segundo a família da vítima eles seriam dois anos mais velhos que a menina.

“A sexualização precoce é uma das formas mais graves da adultização. Uma criança de 11 ou 13 anos não deveria estar pensando em ‘ficar’. Hoje as crianças têm fácil acesso a todo tipo de informação e precisamos protegê-las ainda mais sobre o tipo de conteúdo que elas acessam. A sociedade é machista e as crianças nessa idade não conseguem distinguir se isso é correto ou não”, acrescenta Danielle Admoni, psiquiatra da infância e adolescência, supervisora na residência de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM) e especialista pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Admoni reforça que a forma como os meninos são educados precisa ser repensada coletivamente. “Cabe a nós, ou seja, a toda a sociedade, ensinar como deve ser a postura de meninos e meninas e também ensinar sobre o respeito às mulheres”, diz.

Os profissionais enfatizam ainda que o caso de Alícia Valentina não pode ser considerado uma situação isolada, mas que ele reflete as dinâmicas sociais que afetam o país como um todo. E acrescentam que há a necessidade de uma mudança na educação das crianças.

“A nossa cultura fomenta isso, o querer ser forte e dominador. A questão da violência contra as mulheres e o femincídio são temas que devem ser trabalhados também nas escolas e desde a primeira infância para que meninos e meninas cresçam com direcionamento sobre os temas”, acrescenta José Leon Crochíck, professor do departamento de psicologia da aprendizagem, do desenvolvimento e da personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

Bullying também é um problema a ser enfrentado

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado neste ano apontam que em 2023 duas em cada três escolas brasileiras relataram ter vivenciado episódios de bullying ao longo do ano letivo, um aumento significativo em comparação com os 44% registrados em 2021.

Crochíck coordenou pesquisa com três mil estudantes de 89 escolas públicas e particulares entre os anos de 2018 e 2021 que traçou o perfil dos alunos que cometem bullying e também daqueles que são vítimas.

Os resultados indicam que alunos com bom desempenho acadêmico raramente são vítimas ou autores desse tipo de violência, enquanto aqueles que enfrentam dificuldades em sala de aula, mas se destacam em atividades esportivas, podem estar entre os agressores. As vítimas, por outro lado, são geralmente os chamados “alunos invisíveis”, ou seja, aqueles que não estão entre os melhores nem os piores da turma e que raramente são escolhidos para atividades coletivas e esportivas.

“A nossa cultura valoriza àqueles alunos que são melhores no conteúdo e isso faz com que aqueles que não são tão bons em sala de aula sejam mais rejeitados, o que muitas vezes os tornam violentos. Eles sentem essa rejeição e por isso eles precisam de mais atenção”, diz. “Essa é a chamada educação inclusiva, onde se dá mais importância àqueles que são mais frágeis”, acrescenta.

Como combater a violência escolar?

Reduzir os casos de violência escolar é um desafio e o trabalho deve ser feito com ações de curto, médio e longo prazo, segundo os profissionais ouvidos pela reportagem. O primeiro passo é oferecer escuta ativa e apoio psicológico para crianças e adolescentes vítimas dessa violência e também apoio aos familiares. O apoio também deve ser estendido aos professores e profissionais que atuam no ambiente escolar.

A médio prazo, é importante fortalecer protocolos de cultura de paz no ambiente escolar através do planejamento educacional e pedagógico. E a longo prazo investir em saúde mental vinculada ao desenvolvimento educacional, ampliando assim a rede de apoio psicossocial aos alunos e à comunidade num todo.

“Para prevenir esse tipo de tragédia a gente aposta muito na educação em direitos humanos que tem um de seus caminhos formar pessoas que compreendam os seus direitos e os direitos do outro. Essa educação se dá através do diálogo, promovendo espaços de conversas, de pertencimentos, com acolhimento e mostrando que cada um pode ser do seu jeito”, diz André Bakker, gestor de pesquisa e projetos do Instituto Aurora, organização sem fins lucrativos que atua na promoção da educação em direitos humanos.

“Também não podemos negar a existência dos conflitos. A cultura de paz é justamente incorporar os conflitos, pensando neles e tratando-os. Mostrando que é possível resolver os problemas não de uma maneira violenta”, acrescenta Bakker.