19/09/2025 - 7:41
Acordo pela anistia trava propostas cruciais para população, como isenção do IR até R$ 5 mil e reforma da segurança pública. Para analistas, deputados priorizam benefícios próprios em detrimento de avanços democráticos.Em meio a um acordo entre o centrão e a extrema direita, a Câmara dos Deputados aprovou na noite de quarta-feira (17/09) um pedido de urgência que abre caminho para a votação de um projeto de lei que concede anistia a participantes dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 – deixando de lado projetos de forte apelo popular, como o que isenta quem recebe até R$ 5 mil do Imposto de Renda ou o que reformula a segurança pública no país.
De acordo com especialistas ouvidos pela DW Brasil, a percepção é de que, em meio a embates com o STF (Supremo Tribunal Federal), os deputados do chamado centrão (grupo de partidos de direita e de centro que hoje compõe a maioria no Congresso) e representantes do bolsonarismo conseguiram chegar a um acordo para auto proteção, blindando políticos de investigações e possíveis punições.
Por isso, pautaram na terça passada a votação da chamada “PEC da Blindagem”, proposta que permite que deputados e senadores barrem processos criminais envolvendo colegas, em votação secreta, e estende foro privilegiado para presidentes de partido e a urgência da anistia logo em seguida.
“A gente ainda não sabe até onde vai esse acordo e qual vai ser o conteúdo da anistia, já que ainda há muita discussão a respeito, mas claramente há um acordo de corruptos e golpistas para se protegerem”, diz Cláudio Couto, cientista político da FGV EAESP.
Acordo avança, projetos empacam
Enquanto os dois projetos de interesse dos deputados avançam, outros de maior apelo popular empacam no Congresso por falta de vontade política, como é o caso de diversas propostas que preveem uma melhor regulação das chamadas “bets” no Brasil e do Projeto de Lei 1.087/2025, enviado pelo governo ao Congresso, que propõe uma das mudanças mais ambiciosas na tabela do Imposto de Renda das últimas décadas.
Esse texto isenta totalmente quem ganha até R$ 5 mil por mês e reduz a carga tributária para salários de até R$ 7.350. A medida prevê ainda uma alíquota extra de até 10% para as rendas mais altas, atingindo contribuintes que recebem acima de R$ 600 mil por ano. A proposta já foi aprovada simbolicamente na comissão, mas segue parada antes de ir ao plenário, onde deve enfrentar pressões políticas.
“Essa escolha de uma parcela significativa do Parlamento revela uma preocupação do Parlamento com uma agenda própria e não com as reais prioridades do povo brasileiro, o que nos mostra uma tendência corporativa e a falta de espírito público, tendo em vista que projetos de extrema relevância para a sociedade brasileira se encontram paralisados”, diz o professor de Direito Penal do Ibmec-RJ, Taiguara Libano.
PEC da Segurança
Além disso, especialistas citam ainda a PEC da Segurança Pública (PEC 18/25), que anda em regime comum na Câmara, como uma das prioridades, em meio a casos marcantes de violência e de operações que ligam o crime organizado a políticos e ao centro financeiro do país.
A PEC em tramitação no Congresso propõe alterar a Constituição para consolidar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e ampliar o papel da União na coordenação das políticas do setor. O texto prevê a criação de fundos nacionais para financiar ações de segurança e sistema penitenciário, dá mais atribuições à Polícia Federal e à Polícia Rodoviária Federal e inclui as guardas municipais como parte formal do aparato de segurança.
“Chama a atenção a urgência em votar a anistia, em comparação com certa apatia do Congresso diante de fatos extremamente graves na segurança pública, como a grande operação da PF contra o PCC ou o assassinato do ex-delegado-geral de São Paulo por essa facção. O contraste é ainda maior quando lembramos que entre os parlamentares pró-Bolsonaro há muitos deputados oriundos das polícias ou das Forças Armadas, e que deveriam dar destaque a essas questões”, afirma o cientista político Maurício Santoro.
Para Cláudio Couto, da FGV, historicamente o Congresso trava avanços democráticos em benefício próprio. “Os parlamentares colocam prioridades próprias, em um processo de oligarquização, funcionando como oligarquia em um projeto que o elegeu. e a capacidade de fazer controle efetivo da população sobre os congressistas é muito pequena”, diz.
Embate com STF
Dentro dessa agenda própria, parlamentares também buscam se blindar das punições do STF. Para Rafael Valim, doutor em Direito pela PUC-SP e professor visitante da Universidade de Manchester, no Reino Unido, o Poder Legislativo demonstra estar disposto a enfrentar o Supremo a qualquer custo.
“Não se trata, porém, de uma mera tensão entre Poderes, conatural ao modelo de separação de Poderes. Enquanto o STF está cumprindo sua missão, ao defender a Constituição e o Estado democrático de direito, o Legislativo está trabalhando, às expensas do povo brasileiro, para fragilizar a democracia. Parece-me que o Poder Legislativo não tem condições de vencer essa disputa, mas o futuro dirá”, diz.
Além disso, para Valim, além da falta de prioridade em assuntos relevantes ao país, a aprovação da urgência demonstra, mais uma vez, que parcela expressiva da Câmara dos Deputados não tem qualquer compromisso com a Constituição Federal.
“É absurda a interpretação de que a Constituição Federal de 1988 permite a anistia de crimes contra a ordem democrática, que ela própria reconhece como inafiançáveis e imprescritíveis. Seria concluir que a Constituição autoriza o seu próprio colapso”, diz.
Entre analistas, cresce a percepção de que a condução do debate político no Congresso reforça a desconfiança nas instituições e abre espaço para discursos radicais. A sensação de abandono e de promessas não cumpridas tem levado parte da população a flertar com soluções autoritárias, ainda que sejam justamente esses setores que se beneficiam da frustração social.
“[Legislar em causa própria] é um dos fatores que contribui para a descrença. Por muitas vezes, colocam a esperança em soluções extremistas e autoritárias, mas são justamente os extremistas que estão apoiando essas coisas. Teve gente que votou na extrema direita com a esperança de romper com essas expectativas, mas eles estão envolvidos diretamente nisso”, completa Cláudio Couto, da FGV.