Ideia de que o lixo de um morador é o tesouro de outro faz parte da cultura berlinense há muito tempo, mas a capital alemã se cansou dos resíduos deixados e planeja aumentar as multas. Será que vai funcionar?Entre sofás velhos, geladeiras quebradas, caixas de roupas de bebê e caixotes de fitas cassete, as ruas de Berlim escondem alguns tesouros. Não é raro encontrar bens em ótimo estado de conservação dando sopa na calçada, como jogos de louça completos. Há quem praticamente monte uma casa só com coisas coletadas da rua.

Foi numa dessas coleções de desapegos que o músico berlinense Eno Thiemann descobriu um novo autor favorito. Os livros de Haruki Murakami estavam do lado de fora do prédio, e uma etiqueta avisava: “para doação”. A expressão, que em alemão é zu verschenken, faz parte da alma das ruas da cidade.

“Fiquei muito feliz quando voltei em 2013 e vi que existe essa cultura”, disse Thiemann, que havia deixado Berlim três décadas antes, quando a prática não era popular. “A maioria das pessoas não coloca na rua apenas o que não presta mais — é uma atitude legal e que enriquece o bairro.”

Agora, Berlim planeja multar quem colocar itens na rua, e essa economia circular informal pode estar com os dias contados. A Secretaria de Meio Ambiente da cidade argumenta que, embora a ideia de deixar objetos para outras pessoas pegarem seja “boa e desejável”, ela “levou a excessos que não estão de acordo com a intenção original”. E a limpeza não é barata — no ano passado, , a remoção do lixo despejado sem autorização, incluindo eletrônicos e entulho de construção, custou à cidade cerca de 10,3 milhões de euros (R$ 64,1 milhões).

“Deve ficar claro que deixar itens na rua não isenta o proprietário da responsabilidade por eles, como se fosse ‘eu dei isso’ e agora me livrei disso”, disse uma porta-voz da secretaria à DW.

Berlim aumenta multas

No ano passado, a Berliner Stadtreinigungsbetriebe (BSR), empresa contratada pela cidade para recolher lixo e reciclar, disse que limpou cerca de 54 mil toneladas de resíduos ilegais encontrados em Berlim, um aumento de 8% em relação ao ano anterior. As autoridades consideram que os principais culpados são as empresas de descarte de resíduos de construção que buscam economizar dinheiro.

Multas pesadas são necessárias para frear jogadores de lixo incorrigíveis, defende um porta-voz da BSR, acrescentando que o problema é maior em alguns bairros do que em outros.

As penalidades devem entrar em vigor nas próximas semanas e se aplicarão a vários itens descartados na rua. Qualquer pessoa flagrada deixando nas ruas roupas ou pratos no bairro central de Friedrichshain-Kreuzberg, por exemplo, pode esperar uma multa de 150 a 300 euros (R$ 935 a R$ 1.868) — um aumento considerável em relação às multas atuais, que variam de 25 a 75 euros.

Um porta-voz do bairro disse que os moradores que jogarem fora eletrodomésticos como geladeiras e máquinas de lavar podem receber uma multa entre 1.000 e 15.000 euros (aproximadamente R$ 6,2 mil e R$ 93,4 mil). Anteriormente, a multa máxima era de 5.000 euros.

A ideia é que as multas sejam aplicadas por funcionários à paisana ou resultem de denúncias feitas online por testemunhas. Mas os berlinenses não estão convencidos da viabilidade da aplicação das penas.

“Eles saem, encontram um colchão e então o que acontece?”, questiona Marianne Kuhlmann, cofundadora da Circularity, uma organização sediada em Berlim que ajuda empresas a reduzir seus resíduos. “A probabilidade de flagrarem alguém no momento em que ela coloca o colchão lá é muito baixa.”

“Será difícil, a menos que as pessoas deixem seus cartões de visita dentro das caixas”, disse Thiemann.

Uma economia circular mais formal?

A BSR argumenta que os moradores podem usar outros meios para descartar o que não querem mais. “Ninguém em nossa cidade é forçado a simplesmente deixar seu lixo na rua”, disse o porta-voz da BSR, Sebastian Harnisch. “Há uma variedade de opções atraentes de descarte disponíveis para pessoas físicas se livrarem de resíduos volumosos, lixo eletrônico e outros tipos de lixo gratuitamente ou a um custo baixo.”

Entre elas, estão as feiras de troca de bairro, os 14 centros de reciclagem da cidade e uma loja da própria BSR para a venda de artigos em bom estado deixados nos centros de reciclagem chamada “NochMall”, que faz referência à expressão alemã noch mal, que significa “mais uma vez”. A BSR oferece ainda um serviço de coleta mediante o pagamento de uma taxa.

Política “míope”

Os defensores da sustentabilidade, no entanto, dizem que essa não é a questão. Eles argumentam que os pontos de coleta formais são menos atraentes para aqueles que não podem dirigir ou não têm carro.

Doris Knickmeyer, mentora na organização sem fins lucrativos Zero Waste Verein, de Berlim, teme que a repressão da cidade possa ter resultados indesejados. “Quem tem medo de ser multado no futuro pode jogar coisas boas e utilizáveis nas lixeiras agora, porque é mais fácil e conveniente do que dirigir pela metade da cidade para doá-las na NochMall.”

Ela também destaca a falta de diferenciação entre aqueles que jogam móveis velhos que provavelmente não serão recuperados e aqueles que colocam uma caixa de roupas pouco usadas que podem ser recolhidas em poucas horas. “Colocar aqueles que assumem responsabilidade ambiental na mesma frase que poluidores que evitam responsabilidade é altamente problemático”, disse Knickmeyer.

Reciclagem de resíduos

Em 2021, Berlim revelou sua estratégia Zero Desperdício 2030, prometendo que “as matérias-primas devem ser continuamente reutilizadas e recicladas para criar novos produtos pelo maior tempo possível”.

Até o final da década, a cidade pretende reciclar 64% dos resíduos de construção e reduzir o volume de lixo residual em 20%.

Assumir o compromisso e estabelecer uma agência de resíduos zero dentro da BSR colocou Berlim no caminho certo, mas um relatório de 2024 da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirma que a “dependência da cidade da incineração de resíduos continua alta e as taxas de reciclagem estão abaixo da média nacional”.

Cidades como Madri, Bruxelas, Copenhague e Liubliana começaram a reduzir sua dependência da incineração ou a rejeitar planos de construção de novas usinas para reduzir as emissões de carbono provenientes da queima de lixo.

Knickmeyer propõe que Berlim mantenha sua cultura zu verschenken com locais dedicados em cada rua ou bairro para doações.

“É preciso encontrar um equilíbrio entre facilitar e promover uma cultura de compartilhamento na comunidade, mas também entender que isso causa um problema real para a cidade, pois custa milhões de euros por ano para limpar as ruas”, disse Kuhlmann.