10/10/2025 - 12:07
Diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho surfa o bom momento do cinema nacional com thriller político arrojado sobre a ditadura militar, com estreia simultânea no Brasil, Alemanha e Portugal em 6 de novembro.O cinema brasileiro tem uma longa tradição de filmes sobre a ditadura militar (1964-1985), a exemplo de Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. O Agente Secreto, quinto longa metragem do cineasta Kleber Mendonça Filho e aposta do Brasil na premiação do ano que vem, também busca reconstruir esse momento histórico, mas de um jeito diferente.
As primeiras cenas do filme se passam em 1977, uma época “cheia de pirraça”, como se lê na tela. O protagonista Armando, vivido por Wagner Moura, aparece dirigindo um fusca amarelo em direção ao Recife, em pleno carnaval. Ele é um pesquisador de universidade perseguido pelo regime militar que adota uma identidade falsa, sob o nome de Marcelo, para retornar à sua cidade natal – e do diretor.
Kleber Mendonça tinha nove anos na época retratada e conta que acessou referências reais da sua infância para construir o filme, como o vocabulário, cenários meticulosamente reconstituídos, além de memórias que “pegou emprestadas” de outras pessoas. Ele havia reunido muitas imagens e relatos de moradores durante a produção do seu longa anterior, Retratos Fantasmas, em que faz uma ode aos saudosos cinemas de rua recifenses.
Mas o diretor também foi fundo nas lendas e pilhérias que ocuparam o imaginário de sua geração. “Eu venho de uma cidade que – ainda bem – é muito irreverente, de muitas, muitas formas”, argumentou, durante uma das sessões de pré-estreia em Berlim.
Apesar de ser um thriller político sangrento com toques de realismo fantástico, a obra tem a qualidade histórica de transmitir a “sensação” daquele tempo, ainda presente no país, definiu o diretor. “O filme vem desse momento recente, de um ex-presidente que será preso, que tentou trazer de volta elementos muito conhecidos pelo regime militar”, afirmou, em referência à condenação de Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado.
A obra faz ainda alusão a episódios trágicos recentes da memória nacional, como a morte do menino Miguel, que tinha apenas cinco anos quando caiu do nono andar de um prédio de luxo onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica no Recife, em junho de 2020.
A mãe da criança, a empregada doméstica Mirtes Renata Souza, precisou levar Miguel consigo para o trabalho, já que a escola estava fechada naquele momento da pandemia de covid-19. Enquanto Mirtes descia para passear com o cachorro da família, Miguel ficou sob os cuidados da patroa, Sari Corte Real. Imagens das câmeras de segurança mostram a criança chorando, tentando encontrar a mãe, e sendo colocada sozinha no elevador por Sari. Miguel apertou botões aleatoriamente, saiu no nono andar e caiu de uma altura de cerca de 35 metros.
Condenada a sete anos de prisão pela morte do menino, Sari Corte Real nunca chegou a ser presa, já que foi autorizada a recorrer em liberdade.
No filme, uma patroa ficcional aparece no local de trabalho de Marcelo (Armando) para prestar depoimento e é confrontada pela doméstica desesperada, mãe do garoto morto, apenas para ser protegida por policiais.
Estreia simultânea no Brasil, Portugal e Alemanha
O filme tem lotado sessões em eventos de divulgação em todo o mundo. Na Alemanha, ele estreou no Festival de Cinema de Hamburgo, no fim de semana passado, e depois teve duas exibições em Berlim.
O longa entrará oficialmente em cartaz em 6 de novembro no Brasil, na Alemanha e em Portugal.
“A ideia é que haja um diálogo entre o público desses países. É divertido quando os amigos e a família do Brasil podem recomendar e conversar sobre o filme com quem está aqui, do outro lado do oceano”, disse à DW Fred Burle, um dos produtores da obra, que vive em Berlim.
A estreia simultânea marca um momento de prestígio da produção cinematográfica brasileira na Alemanha e em outras partes da Europa, com obras como O Último Azul, de Gabriel Mascaro, vencedor do Urso de Prata no último Festival de Berlim.
“Nosso cinema cresce enquanto comunidade e isso é bonito de ver. O Oscar para Ainda Estou Aqui nos trouxe visibilidade, mas a corrente só continuou porque entregamos mais e mais filmes de qualidade, com potencial de atingir público dentro e fora do Brasil”, afirma Burle.
“Talvez o bom momento do cinema brasileiro tenha muito mais relação com as boas políticas públicas de incentivo à cultura e um governo que valoriza nossos artistas e os possibilita fazerem seus trabalhos com dignidade. Só O Agente Secreto foi responsável pela geração de mais de 1,3 mil empregos diretos e indiretos”, diz o produtor.
Wagner Moura, Tânia Maria e a perna cabeluda
Premiado neste ano em Cannespor sua interpretação, Wagner Moura foi uma das primeiras certezas do filme – que abocanhou ainda o troféu de melhor direção na última edição do prestigiado festival. “Escrevi o roteiro para ele, sob medida”, contou o diretor.
Wagner Moura é atualmente um dos brasileiros que mais transitam pelos estúdios de Hollywood. Nos últimos anos, protagonizou grandes produções internacionais, como as séries Narcos e Guerra Civil. Ele agora tem empenhado seu carisma e influência na promoção do filme, uma estratégia parecida com a campanha de Fernanda Torres para Ainda Estou Aqui.
Maria Fernanda Cândido, Alice Carvalho, Gabriel Leone e Carlos Francisco também integram o elenco, além de Tânia Maria, que interpreta a carismática Sebastiana, dona do prédio que acoberta Marcelo e outros “refugiados” da ditadura. A atriz potiguar de 78 anos, que era artesã até ser chamada para atuar em Bacurau, serve os melhores alívios cômicos do filme, chegando a ser cotada para concorrer ao Oscar de melhor coadjuvante pela revista Variety – primeira publicação americana a apostar na indicação de Fernanda Torres na categoria de melhor atriz.
Outro personagem que tem chamado a atenção do público é a “perna cabeluda”, célebre lenda urbana do Recife que ganhou tração na época do governo de Ernesto Geisel (1974-1977). O membro decepado marcou presença inclusive na estreia no Festival do Rio, nesta semana.
A entidade aparece pela primeira vez no filme dentro da barriga de um tubarão, enquanto os cinemas da “cidade dos tubarões” – como Recife é conhecida devido aos casos de ataques a banhistas na praia de Boa Viagem – exibem o primeiro blockbuster da história: Tubarão, de Steven Spielberg.
A partir de então, ninguém segura a figura mitológica pernambucana, que ataca na escuridão quem atenta contra o pudor.
Kleber Mendonça conta que lembra da mãe, a historiadora Joselice Jucá, lendo no café da manhã histórias da “perna cabeluda”, escritas como notícias na sessão policial do jornal, com direito a ilustração. A temida criatura noturna era, na verdade, invenção de jornalistas que, sob censura, atribuíam a ela crimes violentos cometidos pelas forças policiais ou militares, principalmente contra a comunidade LGBT. “Encontraram uma maneira de dizer aquilo sem dizer”, explica.
Processos e escolhas
Foram dois anos para escrever o roteiro, um ano de preparação e filmagem, sete meses de montagem e três meses de pós-produção, conta Kleber Mendonça.
O tratamento de imagem amarelado e o diligente trabalho de restaurar uma Recife (e uma São Paulo e uma Brasília) dos anos 1970 – sem uso de inteligência artificial, como faz questão de frisar o diretor – desperta uma sensação ambígua de nostalgia, em meio a atrocidades e derramamentos de sangue ultraexplícitos.
“Tinha que ser muito violento porque, em primeiro lugar, acho que no cinema a violência costuma ser muito fácil e muito limpa. É muito fácil matar alguém na maioria dos filmes de ação”, disse Kleber Mendonça.
Parte da pós-produção foi feita na Alemanha, no estúdio Babelsberg, o maior e um dos mais antigos da Europa, situado em Potsdam (do lado de Berlim).
Sobre a memória de um país
O Agente Secreto é uma obra que “confronta os brasileiros com o seu próprio presente ao analisar o passado”, define Fred Burle. “Sem romantizar, o filme é tenso quando tem que ser, é violento quando tem que ser, é irônico quando tem que ser. Infelizmente, perseguições políticas, ideias estapafúrdias de perdoar crimes, não são algo exclusivo do período da ditadura militar no Brasil.”
“Esses regimes de ultradireita, infelizmente, não foram exclusividade do Brasil e ainda são encontrados em muitos países do mundo. Por isso, nosso filme também dialoga com um público internacional”, complementa o produtor.
Para Kleber Mendonça, o Brasil tem um problema real com a sua memória, o que, para ele, foi agravado pela lei da anistia de 1979 – proposta pelos militares para passar uma borracha em todos os crimes cometidos durante a ditadura, perdoando tanto perseguidos quanto perseguidores.
“Pode ter parecido uma boa ideia em 1979, depois de tanta violência e tanto sofrimento. Mas acho que isso realmente traumatizou a psique do Brasil”, diz o diretor.
Não é por acaso que um dos cenários mais importantes para o filme é o São Luiz, um dos últimos cinemas de rua ainda de pé no Brasil, na contramão das salas em shopping centers. O espaço aparece como um dos poucos lugares seguros da trama, um templo da memória preservada.