Falta de demarcação dos territórios, destruição ambiental e racismo perpetuam violências contra crianças e adolescentes indígenas. Especialistas identificam alguns avanços.Quando o indígena karajá de 15 anos reclamou de dor nas costas, sua mãe imaginou que fosse consequência de uma brincadeira de criança. Mas, ao levantar a camiseta do filho, entrou em desespero. “Eu gritei”, relatou à DW. O garoto havia sido marcado com ferro em brasa – uma prática considerada cruel até mesmo contra animais. O crime foi registrado em abril, na Ilha do Bananal, no Tocantins.

Em outubro de 2024, um caso semelhante aconteceu na mesma ilha: uma criança de seis anos foi marcada no braço. “O ato é inaceitável e traz em si uma carga de crueldade e racismo exorbitante”, descreveu o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Publicado em julho com dados de 2024, o estudo detectou o agravamento da violência contra os povos indígenas, impulsionada sobretudo pela Lei 14.701/2023, que instituiu o marco temporal. O relatório destacou ainda os inúmeros impactos sobre crianças e adolescentes, vítimas de assassinatos, torturas, crimes sexuais e mortes evitáveis.

A violência contra a infância indígena tem raízes históricas e se perpetua desde a colonização. Especialistas e indígenas ouvidos pela DW apontam diversas causas para esses crimes, como a falta de demarcação dos territórios, degradação ambiental e racismo. Mas também identificam avanços que mostram possíveis caminhos para enfrentar o problema.

“A ausência do reconhecimento do nosso território é uma das maiores violências. A criança não tem liberdade de crescer livre no nosso lugar. Isso desencadeia uma série de violações, porque a assistência e o acesso aos direitos sociais fundamentais ficam restritos”, avalia a indígena Cristiane Julião Pankararu, antropóloga e co-fundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).

A mãe do menino de 15 anos marcado com brasa, que pediu para não ser identificada, espera justiça. “Eu quero descobrir por que eles fizeram isso com meu menino. Ninguém tem o direito de fazer isso com ninguém.”

A violência na Ilha do Bananal está relacionada à pecuária. Não indígenas alugam terras na região para criar gado, causando impactos sociais e ambientais. A Justiça do Tocantins inclusive já determinou a retirada dos animais.

Violência e medo

Os contextos mudam, mas os conflitos envolvendo os territórios frequentemente vitimam indígenas e suas crianças, como aconteceu em Potiraguá (BA), em janeiro de 2024. Os pataxó e pataxó hã-hã-hãe ocuparam uma fazenda, reivindicando ser parte do seu território tradicional. Um ataque armado de cerca de 200 fazendeiros e jagunços ligados ao grupo “Movimento Invasão Zero”, segundo o relatório do Cimi, matou Maria Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó, e feriu um adolescente de 14 anos com um tiro na perna.

Os conflitos se acentuaram, segundo o Cimi, com o marco temporal, que restringe o direito dos povos indígenas às terras ocupadas na data da promulgação da Constituição. Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha considerado inconstitucional, o Congresso aprovou uma lei restabelecendo a tese.

O marco temporal também afeta as crianças e adolescentes, analisa a antropóloga Lucia Helena Rangel, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e assessora do Cimi. “O marco temporal é uma ameaça. São crianças afetadas pelo medo de que vão perder a terra, ser expulsos.”

Essa visão é corroborada por Assis da Costa Oliveira, professor da Universidade de Brasília (UnB) e membro do Núcleo de Estudos da Infância e Juventude (NEIJ). “Os conflitos socioambientais que ocorrem dentro dos contextos indígenas têm nas crianças um dos agentes impactados. E tudo aquilo que afeta essas crianças tem uma relação direta com aquilo que se produz enquanto um dano coletivo para esses povos.”

Mortes evitáveis

Em maio de 2024, uma família do povo madija deixou sua aldeia e foi até a cidade de Sena Madureira (AC) para receber benefícios do governo federal. Esperaram por dois dias, acampados em um barranco. Nesse período, uma menina adoeceu e morreu por desidratação e insuficiência respiratória, relatou o Cimi.

Em 2024, o Cimi contabilizou a morte de 922 crianças indígenas de 0 a 4 anos, sendo 497 por causas evitáveis, assim como a menina madija. Segundo o relatório, são mortes “em decorrência de enfermidades, transtornos e complicações que poderiam ter sido controladas por meio de ações de atenção à saúde, imunização, diagnóstico e tratamento adequados”.

“Tem diarréia, doenças respiratórias, desnutrição. São coisas que, meu Deus do céu, não eram para acontecer. Muitas vezes, quando a criança é atendida, ela já está morrendo. E aí não tem como recuperar”, diz Rangel.

O Ministério da Saúde registrou 844 mortes nessa faixa etária. Por meio de nota, informou que a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) promove diversas ações de atenção primária à saúde nos territórios e que o atendimento especializado é de responsabilidade dos estados e municípios.

“Nos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), 87,1% das crianças com mais de um ano receberam consulta de crescimento e desenvolvimento infantil diretamente nas aldeias. Entre as crianças com mais de cinco anos, 88,6% estavam com o peso adequado e 85,7% tinham o esquema vacinal completo.”

Oliveira, da UnB, pondera que, apesar do avanço em áreas como educação escolar e saúde indígena, ainda hoje há dificuldade de acesso a certas políticas públicas, já que elas estão “muito concentradas em determinados contextos de terras indígenas demarcadas, principalmente nas regiões norte e centro-oeste”.

É possível fazer diferente

Um exemplo das violências contra as crianças indígenas e das ações para evitá-las é a Terra Indígena Yanomami, em Roraima e Amazonas, a maior do Brasil. Segundo o relatório, a atitude permissiva e o discurso contrário à demarcação do governo Jair Bolsonaro incentivaram a invasão de terras na região.

O garimpo causou conflitos, destruição da floresta, contaminação dos rios com mercúrio, malária e desnutrição, afetando principalmente as crianças. A partir de 2023, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, foi decretada situação de emergência, e desde então uma série de ações ocorrem na região.

Oliveira, da UnB, cita a reabertura da educação indígena, a implantação de um centro de referência em saúde indígena dentro do Pau do Surucucu, contratação de agentes indígenas de proteção social básica e a criação do Centro de Atendimento Integrado à Criança Yanomami e Ye’kwana (CAICYY).

“Isso mostra muito o quanto é possível fazer diferente, pensar em inovações e garantir que as políticas cheguem aos territórios”, avaliou. “São iniciativas para fortalecer tanto o acesso mais adequado dessas crianças e dos seus povos aos serviços do Estado, como também uma maior autonomia desses povos.”

Uma das estratégias usadas foi o uso do NutriSUS, um composto com 15 vitaminas e minerais, que hoje é disponibilizado nos 34 DSEIs. “O NutriSUS passou a ser adotado como estratégia de combate à desnutrição severa depois de comprovada sua efetividade durante situação de emergência vivida pela população yanomami em 2023”, informou o Ministério da Saúde.

O relatório do Cimi reconheceu avanços na TI, mas apontou outros problemas. Um estudo da Fiocruz e do instituto Socioambiental (ISA) divulgado em abril de 2024, por exemplo, mostrou que 94% dos indígenas yanomami do subgrupo Ninam, em Mucajaí (RR), estão contaminados por mercúrio, com níveis acima do limite da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 84% das amostras analisadas. As crianças estão entre as principais vítimas.

Respeito aos indígenas

O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse acompanhar com preocupação os dados de violência e violação de direitos humanos dos povos indígenas, em especial contra crianças e adolescentes. Em nota, informou que, entre as ações realizadas, está a participação no Conselho dos Direitos da Criança e Adolescentes (Conanda) desde 2023.

Em outubro do ano passado, o conselho aprovou duas resoluções sobre os direitos da infância indígena e dos povos tradicionais. Uma delas diz que eles devem participar ativamente e dar o seu consentimento sobre as políticas e ações que impactam a vida de suas crianças e adolescentes. A outra busca assegurar que formas tradicionais de cuidado e proteção sejam respeitadas e fortalecidas, evitando o racismo institucional.

“O MPI reafirma, assim, seu compromisso em avançar na proteção integral de crianças e adolescentes indígenas, assegurando que cresçam em seus territórios, culturas e línguas, livres de violências e discriminações, e reconhecendo-os como sujeitos de direitos e protagonistas do presente e do futuro.”

Para Pankararu, da Anmiga, a sociedade brasileira tem uma visão distorcida sobre os povos originários. “As pessoas têm uma visão petrificada sobre nós, como se nós tivéssemos parado no tempo. Então a criança indígena está nesse lugar do tempo parado para a sociedade.”

A socióloga indígena defende que o Estado e a sociedade precisam respeitar seus territórios, sua cultura e seus modos de vida se quiserem evitar a violência infantil. “As invasões ainda continuam, com desmatamento, queimadas, mineração, garimpo e até aterro sanitário. São muitas coisas que acontecem e que vulnerabilizam mais nossas crianças”.

A infância indígena, segundo Pankararu, depende da terra. “A nossa organização social é muito vinculada com o lugar, com os nossos guias espirituais, pensadores que dão nossas orientações”, disse. “E isso a gente vai aprendendo desde criança.”