12/10/2025 - 11:02
Livros resgatam histórias de mulheres que perambulam pelo mundo desde o século 4. O que explica essa nova febre editorial após séculos de esquecimento?O que uma freira do século 4 que peregrinou à Terra Santa tem em comum com uma freira espanhola do século 17 que matou o próprio irmão? E o que uma brasileira escritora, feminista e viúva tem em comum com uma suíça que morreu no deserto aos 27 anos? As quatro foram viajantes e tiveram suas histórias resgatadas recentemente por pesquisas que compartilham relatos de mulheres que desbravaram o mundo.
Egéria, Catalina de Erauso, Nísia Floresta e Isabelle Eberhardt foram pioneiras – seja pela forma de viajar ou por ocuparem espaços, até então, restritos a homens. Obras que resgatam suas trajetórias e de outras viajantes hoje estão em prateleiras de livrarias, após séculos de esquecimento. O que explica o sucesso editorial dessas histórias?
“Febre” nas prateleiras
De acordo com Paula Carvalho, jornalista e historiadora que organizou uma obra sobre a viajante suíça Isabelle Eberhardt (1877–1904), os textos mostram que as mulheres sempre viajaram, uma vez que o deslocamento é natural ao ser humano. A novidade é a descoberta e o interesse recente pelos relatos femininos, que são menos numerosos do que os masculinos.
“Primeiro, tem a questão da alfabetização, porque homens eram de classe mais alta, então tinham mais acesso à educação e à alfabetização. Segundo, há a questão da validação, de eles acharem que o que escrevem é importante”, afirma a organizadora de Direito à vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt. “Por isso, se vê muito mais relatos de viagens de mulheres em cartas e diários do que em livros.”
Para a historiadora e pesquisadora da Universidade São Paulo (USP) Stella Maris Scatena Franco, esses lançamentos são fruto de uma tendência mais ampla que começa nos anos 1960: a expansão de pesquisas de teoria feminista e de movimentos de mulheres.
“Esse é um momento rico de consolidação de estudos críticos que tiveram que buscar um espaço na academia, no âmbito das letras e da produção literária. Então esse momento é de consagração dessas lutas, de produção intelectual, debates”, explica.
As primeiras viajantes
O primeiro relato de viagem escrito por uma mulher do qual se tem conhecimento é o de Egéria, que estudiosos inferem ter sido uma freira. A pesquisadora portuguesa e autora do livro Mulheres Viajantes, Sónia Serrano, a chama de “padroeira das viajantes modernas”. Ela viajou, acompanhada de homens do clero e de oficiais do Império Romano, à Terra Santa. Tudo indica que a empreitada se deu no século 4 e durou três anos.
Na contramão dessa história, há a de outra freira cuja vida parece um roteiro de filme: a da espanhola Catalina de Erauso, que viveu na era das grandes navegações e, posteriormente, assumiu identidades e nomes masculinos. Ela fugiu do noviciado ainda jovem e empreendeu viagens, chegando a servir como soldado a forças espanholas na América do Sul, em países como Chile e Peru. Em um causo real de contornos ficcionais, ela matou o irmão, o capitão Miguel de Erauso, sem que fosse por ele reconhecida.
A história das duas é contada por Serrano, que se dedicou por quatro anos à pesquisa de 19 mulheres viajantes. Lançado em Portugal em 2014, o livro já está na quinta edição. Em 2025, ganhou uma versão brasileira pela editora Tinta da China.
Serrano afirma que queria preencher uma lacuna na história de mulheres viajantes que escreveram relatos sobre o que viram e, com isso, inspirar outras mulheres. “Até agora, a história sempre foi feita por homens, eles sempre escreveram a história. Isso não é nem sequer uma crítica, mas uma constatação. A partir daí, eu quis contrariar um pouco isso”, explica.
Ela lembra que, quando entrevistou a velejadora brasileira Tamara Klink para compor o capítulo de viajantes modernas – acrescentado à edição brasileira –, ficou surpresa com o reforço da importância de contar histórias de mulheres. “Ela me falou que, quando era criança, queria ser um ‘homem do mar’. Então há uma ansiedade das mulheres em ter modelos e referências de outras mulheres que alcançaram o que desejam”, diz.
Mulheres à frente do seu tempo?
Essas mulheres são, frequentemente, descritas como “à frente do seu tempo” – expressão da qual Paula Carvalho discorda. “Ninguém está à frente do seu tempo. Cada uma está inserida no seu contexto e tempo histórico”, esclarece. “A literatura de viagem está bastante inserida no colonialismo do mundo. Ela também era uma das fontes para validar o colonialismo europeu dentro do imaginário, porque essas obras tinham bastante sucesso comercial.”
Isabelle Eberhardt, por exemplo, sobre quem Paula se debruçou, explorou o mundo árabe e ganhou uma obra que reúne seus textos ao longo de sete anos de viagem. O inusitado da história dela é que vivia como homem e mulher ao mesmo tempo.
“Desde cedo ela criou essa ideia de que para você sair de casa você precisa se vestir de homem. Ela já era um ser meio andrógino, ela escrevia cartas com pseudônimos masculinos quando mais nova”, explica Carvalho.
Quando foi morar na Argélia, aos 20 anos, adotou uma identidade masculina, chegando a ser aceita por grupos de homens árabes. “Não que ela enganasse eles, porque as pessoas sabiam que ela era mulher, mas ela era aceita”, afirma Paula, que acrescenta que ela casou com um soldado argelino que aceitava sua condição andrógina.
A vida aventureira da jovem suíça teve um fim trágico com a inundação de sua casa por uma enchente súbita. ”Ela morreu aos 27 anos, que é a idade dos rockstars, afogada no deserto”, conta Carvalho.
Estado civil e condição socioeconômica eram determinantes
Empreender viagens pelo mundo exigia estratégia e o entendimento de condições sociais e econômicas que favoreciam ou facilitavam o deslocamento. A educadora e feminista brasileira Nísia Floresta (1810-1885) viajou sozinha à Europa, no século 19, desfrutando de um privilégio concedido às mulheres viúvas. Franco reforça que a condição de viuvez chancelava, na época, aquelas viagens.
“Para colocar as viagens dela ou essa ação pouco comum de ser uma mulher que vivia viajando dentro de um marco de aceitabilidade e legitimidade, ela recorria a estratégias, como falar o tempo inteiro do marido ou da mãe. É uma recorrência, não só nos relatos dela, quanto no de outras mulheres”, explica Franco.
Diferenças entre relatos de homens e mulheres
Apesar da distância temporal, a identificação também exerce um papel no interesse crescente pelas obras de mulheres viajantes. “Embora sejam relatos de viagens de muito tempo atrás, a forma com que essas mulheres viajavam e escreviam sobre suas experiências dialoga com as nossas experiências hoje”, afirma Gabriele Duarte da Silva, escritora da newsletter Bom Proveito, viajante e consultora de viagens.
“Os relatos dos homens são muito focados em fazer descobertas e mapas, então a abordagem das mulheres é diferenciada, mais aprofundada, com mais conjugação das paisagens internas e externas, ou seja, do que se sente quando se vê as coisas”, completa.
Silva também afirma que o motivo pelo qual as mulheres saíam pelo mundo difere das de hoje, mas ainda há pontos em comum. O principal é escapar ao que é esperado do gênero feminino.
“As primeiras viajantes e as viajantes de hoje são mulheres com privilégios, sejam de recursos, de tempo ou de apoio familiar, mas a mulher que se propõe a viajar sempre escapa do que se espera dela. Então acho que ler essas mulheres, contemporâneas ou não, ajuda a desmistificar a ideia do que é esperado da gente”, comenta.
Franco lembra que é preciso sempre colocar em perspectiva os relatos, já que, ao mesmo tempo em que adotaram posturas disruptivas, essas mulheres também se adaptaram às normas vigentes. “É importante que nós tenhamos um olhar que saiba identificar os propósitos daquele momento”, pontua.