02/11/2025 - 15:45
Presidente da Colômbia criticou operação no Alemão e a comparou com ação na Comuna 13, que deixou dezenas de mortos na cidade colombiana em 2002. Contextos e impactos das investidas diferem entre os países.A ação da polícia nos complexos da Penha e do Alemão na última semana reacendeu comparações com conflitos em áreas urbanas observados na Colômbia. Assim como no Brasil, o domínio territorial de criminosos foi usado como justificativa para o uso intensivo da força em operações militares no país vizinho. O emprego do aparato de segurança em comunidades colombianas contou com apoio popular no passado, mas levantou questionamentos de violações de direitos humanos.
Na última quarta-feira (29/10), o presidente colombiano Gustavo Petro criticou a conduta do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, cuja megaoperação deixou mais de uma centena de mortos. “Assim como na operação na Comuna 13 de Medellín”, escreveu, chamando a investida brasileira de “bárbarie”. A postagem, feita na rede social X, remete à chamada Operação Orión, de outubro de 2002, que se tornou um dos principais marcos do conflito urbano na Colômbia.
Ordenada pelo ex-presidente colombiano Álvaro Uribe, a ação na Comuna 13, então um dos bairros mais violentos de Medellín, contou com um forte aparato militar.
A intenção era retomar o poder de um território ocupado por guerrilhas, incluindo as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN). Durante dois dias, a região registrou tiroteios amparados pelo uso de helicópteros. Nos meses seguintes, a ocupação seguiu e ficou marcada por uma série de detenções.
“A ação foi produto de decisões militares e políticas, com as forças de segurança usando de todas as ferramentas possíveis, legais e ilegais. Foram mobilizadas ao menos 1500 pessoas, incluindo paramilitares”, conta o jornalista colombiano Ricardo Aricapa, autor do livro Comuna 13: Crônica de uma Guerra Urbana.
A Orión ocorreu após uma série de outras incursões no território que fracassaram devido à falta de planejamento e que ficaram marcadas pela alta letalidade.
O autor conta que a operação foi amplamente apoiada, com os paramilitares sendo recebidos como uma “bênção” pela população local e bandeiras colombianas sendo estendidas à época. “Na época, cerca de 80% dos moradores aplaudiram a operação”, afirma.
Por sua vez, a ação deixou um forte rastro de violação de direitos, especialmente relacionado ao que na Colômbia ficou conhecido como “falsos positivos”, quando cidadãos inocentes assassinados por forças de segurança eram falsamente apontados como membros de grupos como as Farc.
Isso ocorreu devido às políticas de Uribe de bonificação por cada guerrilheiro morto em confronto com as forças de segurança. Segundo a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), mais de 6 mil pessoas foram vítimas deste tipo de ação.
Não há um consenso sobre o saldo oficial de mortos na operação Orión. Sabe-se, porém, que chega às dezenas e também acumula desaparecidos, feridos e presos. Segundo Aricapa, centenas de pessoas foram classificadas como “falsos positivos” no caso da Comuna 13.
À época, porém, Medellín vivia um contexto diferente do domínio territorial do crime organizado no Rio de Janeiro, já que enfrentava um conflito armado interno entre guerrilhas, o que exacerbou os embates com forças de segurança. Até hoje, organizações cobram respostas sobre desaparecidos durante a operação.
A Orión acabou se tornando um marco da transformação da cidade, que nos anos seguintes passou a investir de forma mais ampla em infraestrutura, urbanismo social e mobilidade para melhor integrar a Comuna 13 à cidade. A polícia também passou por um processo posterior de modernização.
“Antes de 2002, a Comuna 13 era uma das regiões mais abandonadas, sequer aparecia nos mapas. O transporte era muito deficiente para a região”, conta Aricapa. Desde então, foram colocadas em prática políticas públicas de acesso, incluindo uma presença armada para garantir estabilidade no território.
“Isso abriu espaço para o surgimento de um movimento cultural que acabou atraindo turismo para a região, o que não era a ideia inicial”, afirma Aricapa. Hoje, a Comuna 13 se tornou uma atração em Medellín, contando ainda com investimentos socioeconômicos e a instalação de uma série de ONGs que oferecem serviços à população local e que atraem voluntários de várias partes do mundo.
Referência para o Brasil
O arrefecimento da violência em Medellín se tornou referência para autoridades brasileiras. Durante a gestão do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, a cidade serviu de inspiração para uma série de medidas de urbanização aplicadas pelo governo fluminense, como a instalação de teleféricos e escadas rolantes em comunidades.
As semelhanças da topografia de Medellín com a do Rio de Janeiro ajudam a explicar a atração. Situada no Vale do Aburrá, a cidade colombiana passou a ser intensamente povoada na década de 70 por habitantes rurais fugindo da violência que então se alastrava pelo interior do país. O resultado foi o estabelecimento de comunidades precárias nas áreas mais altas, com uma infraestrutura que por décadas foi incapaz de acompanhar o desenvolvimento urbano.
“São setores sem árvores, que tiveram um crescimento sem planejamento. Territórios muito semelhantes às favelas do Rio de Janeiro”, afirma Aricapa.
Nestes espaços com ausência de serviços do Estado, o tráfico de cocaína, à época em expansão, aproveitou da localização estratégica de Medellín. Capital do departamento da Antioquia, o maior da Colômbia, a cidade tem uma posição que possibilita certa proximidade com as zonas produtoras de folha de coca nos Andes ao mesmo tempo em que não está distante da saída ao mar. Ela ficou famosa por ter sido reduto do narcotraficante Pablo Escobar.
Na visão de Steven Dudley, cofundador e codiretor da InSight Crime, na comparação com as operações no Rio de Janeiro e em Medellín, ambas foram conduzidas pelo governo em regiões que estavam completamente fora de controle, resultando em inúmeras mortes e traumas entre civis.
No entanto, “a operação colombiana foi liderada pelos militares, e houve repercussões a quem as comandou. Já a brasileira foi conduzida pela polícia militar, e eu ficaria surpreso se houvesse alguma investigação sobre o ocorrido ou sobre as consequências”, afirma.
Crime muda de ramo
Apesar da queda nos números de homicídios e a relativa tranquilidade nas ruas da cidade, uma visão mais aprofundada entende que o crime não abandonou totalmente a cidade, e sim alterou seus métodos.
“Esse uso da força, embora tenha sido considerado por muitos um sucesso militar decisivo, evidenciou a gestão tardia e deficiente do conflito, que privilegiava a ação punitiva e evitava o desafio de pensar as dimensões sociais e políticas do mesmo”, escreve o Grupo de Memória Histórica sobre a operação.
A redução de homicídios passou a ser uma vitrine política na cidade, que chegou a registrar quase sete mil mortos em 1991. Nos últimos anos, o número ficou próximo dos 400, o que proporcionalmente coloca a cidade com índices menores que o de outros municípios colombianos como Cartagena.
Diferentes dos constantes confrontos, explosões e homicídios que marcaram os anos 80 e 90, a atuação do crime hoje se baseia mais em extorsões e na oferta de serviços.
O relatório do Grupo de Memória Histórica cita que, depois de 2008 surge uma “reconfiguração da conflito violento”, com ações mais silenciosas e menos midiáticas, mas sem abrir mão do controle social.
“Os efeitos das operações foram abrangentes, mas temporários. As forças de segurança conseguiram conter parte da criminalidade, mas o verdadeiro poder residia nos criminosos, que entenderam muito melhor como controlar o crime”, afirma Dudley, da InSight Crime.
“A transformação faz parte destes grupos, que possuem uma lógica de capital. Às vezes, vão começar a buscar espaço onde outros agentes deixem livres. Podem, por exemplo, ocupar o espaço de segurança que falta às forças do Estado. O mesmo ocorre nos espaços econômicos”, diz Daniel Bonilla Calle, professor de negócios internacionais da Fundação Universitária CEIPA.
Casos emblemáticos de exploração hoje vistos na cidade se concentram em extorsões, prostituição e a agiotagem. “Se o sistema bancário conta com uma série de barreiras, o espaço é ocupado pelos atores criminosos, já que produzem criminalidade que gera rentabilidade”, aponta Bonilla.
“Em Medellín, já foram detectados casos em que atores criminosos controlam o comércio de produtos básicos, como leite e ovos. É vantajoso, já que além de prover dinheiro, oferece controle sobre quem transita nos territórios”, pontua.
Reestruturação e ocupação de espaços
Enquanto isso, os grupos mais ligados ao narcotráfico passaram a dominar regiões colombianas com menor urbanização. Na região do Vale do Cauca, há uma presença cada vez mais massiva destas facções no controle do garimpo ilegal, que se tornou cada vez mais lucrativo com alta do preço do ouro.
Além disso, os grupos passaram a contar com uma presença maior na Amazônia, incluindo a fronteira com Brasil, que vem se notabilizando pelo intercâmbio de mercadorias ilegais entre criminosos dos países.
“Foi parte da reconfiguração dos grupos criminosos. Como não há os grandes carteis, com o de Medellín e Cali, que tinham grande parte do seu comando de operações nas cidades, hoje existem estruturas mais atomizadas”, afirma Bonilla Calle.
“Ainda assim, sua fonte de receitas segue a mesma, a diferença é que algumas foram potencializadas, como o garimpo. Além disso, os centros financeiros seguem nas cidades”, pontua. Desta forma, as capitais ainda seguem como parte importante dos grupos, como na lavagem de dinheiro.
